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Diogo Schelp

Médicos que se negam a cortar a mão de ladrões ajudam a derrubar ditador

Diogo Schelp

12/04/2019 16h45

Sudão protesto

Manifestante sudanês com máscara cirúrgica e jaleco, em Cartum, no dia 10 de abril (Foto: REUTERS/Stringer)

Eis que mais um ditador sanguinário é apeado do poder por pressão popular no mundo árabe, numa espécie de flashback da Primavera Árabe de oito anos atrás. Mas, assim como ocorreu naquela onda de protestos que abalou tiranos no Oriente Médio e no Norte da África, um final feliz não parece estar no roteiro do que virá após a queda de Omar al Bashir, que durante 30 anos governou o Sudão a ferro e fogo. Depois de quatro meses de protestos populares, ele foi afastado por um golpe de Estado e em seu lugar assumiu uma junta militar que pretende fazer uma transição política em dois anos. A julgar pelo que aconteceu no Egito e na Líbia, é difícil acreditar que a promessa será cumprida.

Quem quer que se candidate ao próximo ditador do Sudão, porém, terá que lidar com uma inusitada força mobilizadora no país africano: a classe médica. Volto a isso em breve. Estive no Sudão em 2008, como já contei por alto aqui. Durante a viagem, visitei a isolada região de Darfur, onde o regime de Bashir promoveu um genocídio que matou mais de 400.000 cidadãos e obrigou 2 milhões de pessoas a abandonar suas casas. Também estive no Sudão do Sul, uma região igualmente conflagrada e majoritariamente cristã — em um país comandado por um regime que aplicava a sharia, a lei islâmica. O Sudão do Sul, três anos depois, conquistou a independência, mas as coisas continuam quentes por lá. Perguntei aos sudaneses, na capital Cartum, sobre a aplicação da lei islâmica no país. Apedrejamento de mulheres, 100 chibatadas, amputação de mãos e pés de criminosos, tudo isso estava no cardápio. Mas o que mais me deixou intrigado foi saber que a última vez que um condenado havia tido os membros amputados, punição prevista para ladrões, havia sido em 1983. E a razão, segundo me explicaram, é que os médicos sudaneses se revoltaram e a partir de então se recusavam a cumprir a sentença, já que a função de carrasco caberia a eles.

Mais recentemente, em fevereiro de 2013, essa "quebra" de tradição jurídica foi posta de lado e um homem teve a mão direita e o pé esquerda cortados por ordem da Justiça sudanesa. A chamada "amputação cruzada" aconteceu em um hospital da polícia em Cartum. O condenado era Adam al-Muthna, de 30 anos, que havia metralhado um carro para roubar o equivalente a pouco mais de 200 dólares. Quando estive no Sudão, era possível comprar com esse dinheiro, dependendo da prioridade do freguês, dois fuzis AK-47 ou duas garrafas de uísque Johnny Walker Red Label (o consumo de álcool é proibido sob a sharia). 

As organizações de direitos humanos internacionais diziam que a sentença de amputação, a primeira no governo de Bashir, ocorreu depois que ele prometeu aplicar "100%" a constituição islâmica do país. É bom lembrar o contexto: em 2013, os grupos radicais islâmicos estavam crescendo em diversos países da Primavera Árabe. O governo de Bashir sofria pressão por causa da inflação e de outros problemas econômicos e tratou de mostrar seu lado mais fundamentalista para impor o medo na população.

Mais uma vez, os médicos sudaneses se revoltaram contra a punição desumana e contrária à ética da profissão. A União dos Médicos Sudaneses protestou e pediu a investigação do caso e a retirada do registro dos doutores que fizeram a amputação.

Agora, cinco anos depois, os médicos estiveram mais uma vez à frente dos protestos que, enfim, levaram à derrubada de Bashir. Era comum vê-los empunhando cartazes nas manifestações ou tratando os feridos, além de estarem sempre na liderança, convocando outras categorias à greve. Alguns manifestantes usavam máscaras cirúrgicas, mesmo não sendo profissionais da saúde, com o duplo propósito de esconder seus rostos e de reconhecer o papel de relevância dos médicos no movimento.  

Os doutores pagaram um preço alto por essa militância. Apenas no primeiro mês de protestos, cerca de 30 dos mais 500 manifestantes presos pelas forças de Bashir eram médicos. Um dos detidos é presidente da Associação Sudaneses de Cirurgiões (muitas das organizações são clandestinas, pois o regime proíbe a livre associação). Alguns, como o Dr. Babiker Abdelhamid, foram executados a sangue frio por estarem prestando socorro aos manifestantes feridos. Soldados chegaram a invadir um hospital na cidade de Omdurman, disparando com suas armas e jogando gás lacrimogêneo nos corredores, enquanto buscavam por manifestantes. Em outras unidades de saúde, a polícia pressionava os médicos a entregar os projéteis que eram retirados de suas vítimas, para eliminar provas da repressão.

Será que tudo isso acabou? A população continua nas ruas empoeiradas do país. O destino do Sudão, com sua população tão sofrida, é incerto. A determinação dos médicos sudaneses seguramente será um desafio para a junta militar que se aboletou no poder em Cartum.

Sobre o Autor

Diogo Schelp é jornalista com 20 anos de experiência. Foi editor executivo da revista VEJA e redator-chefe da ISTOÉ. Durante 14 anos, dedicou-se principalmente à cobertura e à análise de temas internacionais e de diplomacia. Fez reportagens em quase duas dezenas de países. Entre os assuntos investigados nessas viagens destacam-se o endurecimento do regime de Vladimir Putin, na Rússia, o narcotráfico no México, a violência e a crise econômica na Venezuela, o genocídio em Darfur, no Sudão, o radicalismo islâmico na Tunísia e o conflito árabe-israelense. É coautor dos livros “Correspondente de Guerra” (Editora Contexto, com André Liohn) e “No Teto do Mundo” (Editora Leya, com Rodrigo Raineri).

Sobre o Blog

“O que mantém a humanidade viva?”, perguntava-se o dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Essa é a pergunta que motiva esse blog a desembaraçar o noticiário internacional – e o nacional, também, quando for pertinente – e a lançar luz sobre fatos e conexões que não receberam a atenção devida. Esse é um blog que quer surpreender, escrito por alguém que gosta de ser surpreendido.