Topo

Diogo Schelp

Argentina não vai virar Venezuela, mesmo que Cristina Kirchner queira

Diogo Schelp

03/05/2019 17h07

Cristina Kirchner

A senadora e ex-presidente argentina Cristina Kirchner (Imagem: Martin Acosta/Reuters)

O presidente Jair Bolsonaro tem razão em se preocupar com o risco de a ex-presidente argentina Cristina Kirchner voltar ao cargo nas eleições que vão acontecer em outubro deste ano. A atual senadora acaba de se lançar pré-candidata e, como eu já escrevi aqui, tem chances de chegar ao segundo turno. Cristina fez um governo desastroso (a hiperinflação que o presidente Mauricio Macri vem tentando conter com medidas heterodoxas, mais especificamente controle de preços, é herança dela) e alinhado com o bolivarianismo que tomou conta de diversos países da América Latina. Se ela voltar ao poder, representará um desafio para a diplomacia bolsonarista, tanto pelas faíscas ideológicas que certamente seriam trocadas entre os dois governos quanto pela postura anti-mercado e protecionista do kirchnerismo.

Mas o risco de a Argentina virar uma Venezuela no caso da eleição de Cristina Kirchner é baixo. Afinal, é preciso percorrer um longo caminho de degradação institucional e social para chegar ao nível da Venezuela. O país comandado pelo ditador Nicolás Maduro tem 94% da população vivendo abaixo da linha da pobreza. O índice na Argentina é de 32%. No quesito institucional, mesmo doze anos de kirchnerismo (somando o governo de seu falecido marido, Néstor Kirchner, e os dois mandatos de Cristina) não foram capazes de acabar com a independência dos poderes Legislativo e Judiciário, apesar da intimidação e de diversas tentativas de mudar as regras do jogo democrático.

Para chegar no nível venezuelano, Cristina Kirchner precisaria conseguir concentrar o mesmo grau de poder que Nicolás Maduro tem, e que foi herdado de seus antecessor, Hugo Chávez. Mas ela não possui o instrumento primordial para isso: petrodólares. Essa palavra é a chave para entender como a Venezuela chegou ao ponto em que está. Basicamente, se a Venezuela não fosse tão rica em petróleo e se o governo não pudesse dispor desse recurso como bem quer, Chávez nunca teria conseguido colocar em prática seu projeto do "socialismo do século XXI" e Maduro nunca teria se transformado no ditador que é. Entre 2004 e 2015, o governo chavista angariou 750 bilhões de dólares com a venda de petróleo — que representa 96% das exportações do país. Com esse dinheiro, Chávez adotou a estratégia de desmantelar o setor produtivo do país para tornar a população mais dependente das benesses do regime, com seus inúmeros programas assistenciais e com a venda de alimentos subsidiados.

Essa era a máquina de voto de Chávez: empobrecer a população para torná-la dependente das migalhas governamentais. Certa vez, entrevistei uma mulher em Caracas que recebia uma ajuda mensal em dinheiro do governo para fazer um curso de alfabetização para adultos ministrado por cubanos. Seu marido estava desempregado porque a empresa onde ele trabalhava havia sido desapropriada pelo governo. Ambos, então, passaram a depender do assistencialismo chavista — e tinham medo de perder até essa última fonte de renda caso a oposição vencesse as eleições. A máquina pública de comprar eleitores acabou porque os recursos do petróleo minguaram, em parte pela queda no preço do barril, em parte pela gastança desenfreada e pela corrupção estatal.

A Argentina não enfrenta a maldição do petróleo. Os principais produtos de exportação do país são commodities agrícolas. Tem, sim, a maldição do populismo e um sistema monetário historicamente problemático, mas as condições para transformar Cristina Kirchner numa ditadora ao estilo de Nicolás Maduro são inexistentes. Ela dificilmente conseguiria acumular o poder que Maduro herdou de Chávez. Os problemas serão outros.

Sobre o Autor

Diogo Schelp é jornalista com 20 anos de experiência. Foi editor executivo da revista VEJA e redator-chefe da ISTOÉ. Durante 14 anos, dedicou-se principalmente à cobertura e à análise de temas internacionais e de diplomacia. Fez reportagens em quase duas dezenas de países. Entre os assuntos investigados nessas viagens destacam-se o endurecimento do regime de Vladimir Putin, na Rússia, o narcotráfico no México, a violência e a crise econômica na Venezuela, o genocídio em Darfur, no Sudão, o radicalismo islâmico na Tunísia e o conflito árabe-israelense. É coautor dos livros “Correspondente de Guerra” (Editora Contexto, com André Liohn) e “No Teto do Mundo” (Editora Leya, com Rodrigo Raineri).

Sobre o Blog

“O que mantém a humanidade viva?”, perguntava-se o dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Essa é a pergunta que motiva esse blog a desembaraçar o noticiário internacional – e o nacional, também, quando for pertinente – e a lançar luz sobre fatos e conexões que não receberam a atenção devida. Esse é um blog que quer surpreender, escrito por alguém que gosta de ser surpreendido.