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Diogo Schelp

Decreto sobre porte de armas vai tornar massacres em escolas mais letais?

Diogo Schelp

12/05/2019 15h36

Decreto Bolsonaro

Jair Bolsonaro na assinatura do decreto sobre porte de armas (Foto: Adriano Machado/Reuters)

Certas medidas do governo parecem descoladas da realidade. O decreto que flexibiliza o porte de armas para diversas categorias profissionais, assinado no último dia 7 pelo presidente Jair Bolsonaro, é um exemplo. Ele veio à tona menos de dois meses após o massacre de oito pessoas (entre os quais cinco estudantes), em uma escola em Suzano, em São Paulo, cometido por dois ex-alunos armados com revólver, machado, besta e arco e flecha. De que maneira o aumento no número de brasileiros com direito ao porte de arma pode impactar em crimes como esse, em que o armamento usado pelos atiradores tem relação direta com o número de mortos?

Nos Estados Unidos, onde os tiroteios em massa (quando um atirador entra em um local matando aleatoriamente o maior número possível de pessoas) já são tratados como uma epidemia, a discussão sobre como coibi-los gira justamente em torno da questão do controle de armas. Os especialistas consideram que o fácil acesso às armas no país incentiva e aumenta a letalidade desses episódios. No Brasil, onde a compra de armas de fogo é bem mais restrita, o fenômeno dos tiroteios em massa deveria ser um dos elementos a serem considerados em qualquer política pública a respeito do tema. O fato de o acesso às armas por cidadãos comuns ser uma promessa de campanha de Bolsonaro não isenta o governo de promover um debate sério sobre isso antes de mudar as regras.

Este artigo não se propõe a dar uma resposta pronta para a questão da relação entre o acesso às armas e a letalidade dos tiroteios em massa. Pretende apenas lançar luz sobre dois dados que podem contribuir para esse debate.

O primeiro diz respeito à origem das armas usadas nos principais massacres em escolas no Brasil e nos Estados Unidos. No Brasil, em metade dos casos as armas foram obtidas ilegalmente, adquiridas de criminosos que as roubaram ou compraram de cidadãos que possuíam posse ou porte legal, e na outra metade estavam dentro de casa, muitas vezes desviadas de pais policiais. No primeiro caso incluem-se os massacres de Realengo, no Rio de Janeiro (2011, 12 mortos), e o de Suzano, em que o revólver .38 tinha a numeração raspada (as armas brancas usadas no episódio foram compradas na internet). O segundo caso inclui o ataque de Goiânia (2017, 2 mortos), em que o .38 usado pertencia à mãe policial militar do atirador, e o de São Caetano (2011, nenhum morto a não ser o próprio atirador de 10 anos), em que a arma pertencia ao pai do garoto, que era guarda municipal.

Já nos massacres ocorridos nos Estados Unidos, o uso de armas obtidas legalmente é uma constante. Em muitos casos, foram compradas pelos próprios atiradores, que tinham licença para carregá-las consigo. Um dos exemplos é o do mais letal de todos os tiroteios em escolas americanas, ocorrido na Virgínia, em 2007, com um saldo de 32 mortos. O estudante Seung-Hui Cho, de 23 anos, tinha licença para portar fuzis. 

Em pelo menos metade dos casos brasileiros, portanto, os atiradores precisaram recorrer ao mercado clandestino para obter a arma do massacre. Uma questão que precisa ser levantada é: ao tornar mais fácil o acesso legal às armas por cidadãos comuns, os episódios de massacres a tiros vão se tornar mais frequentes e letais? Afinal, nos Estados Unidos, onde comprar uma arma é fácil, calcula-se em mais de 100 o número de ataques a tiros em escolas nos últimos 20 anos. No Brasil, foram oito episódios.

O segundo dado que merece ser analisado refere-se a um estudo feito nos Estados Unidos sobre a relação entre o tipo de armamento usado e a letalidade dos massacres ocorridos naquele país. Em artigo publicado em dezembro passado no Journal of the American College of Surgeons foram analisadas as autópsias de 23 tiroteios em massa ocorridos nos Estados Unidos entre 2000 e 2016. Dos 232 mortos nesses massacres, 73 morreram por ferimentos causados por disparos de armas curtas (revólveres e pistolas), 105 por fuzis, 22 por espingardas and 32 por diferentes tipos de armas de fogo.

Os pesquisadores descobriram que a proporção de mortos era maior em massacres com armas curtas, enquanto nos episódios em que os atiradores usaram fuzis o número de pessoas atingidas era maior, ainda que com uma proporção menor de mortos. Além disso, 26% das vítimas atingidas por disparos de pistolas e revólveres tiveram mais de um ferimento fatal, enquanto essa proporção era de 2% no caso das pessoas alvejadas por fuzis. Uma hipótese para esses dados é que os atiradores armados com revólveres e pistolas tendem a disparar mais vezes e a uma distância mais curta contra as vítimas.

Esses dados são importantes porque colocam em cheque a tese de que, nos Estados Unidos, os massacres são piores porque envolvem armas de maior alcance e com alta cadência de tiro (capazes de fazer mais disparos por minuto). Em outras palavras, é preciso analisar com seriedade se o maior acesso a armas curtas mais potentes, como o que foi dado pelo decreto de Bolsonaro, pode ser o bastante para aumentar a letalidade dos tiroteios em massa, mesmo que a compra de fuzis continue restrita. Em seis dos oito tiroteios em escolas ocorridos no Brasil, o protagonista da matança foi um revólver .38. O que vai acontecer quando os atiradores passarem a ter acesso facilitado a pistolas .40, 9 mm, .45 e 357 Magnum?

Sobre o Autor

Diogo Schelp é jornalista com 20 anos de experiência. Foi editor executivo da revista VEJA e redator-chefe da ISTOÉ. Durante 14 anos, dedicou-se principalmente à cobertura e à análise de temas internacionais e de diplomacia. Fez reportagens em quase duas dezenas de países. Entre os assuntos investigados nessas viagens destacam-se o endurecimento do regime de Vladimir Putin, na Rússia, o narcotráfico no México, a violência e a crise econômica na Venezuela, o genocídio em Darfur, no Sudão, o radicalismo islâmico na Tunísia e o conflito árabe-israelense. É coautor dos livros “Correspondente de Guerra” (Editora Contexto, com André Liohn) e “No Teto do Mundo” (Editora Leya, com Rodrigo Raineri).

Sobre o Blog

“O que mantém a humanidade viva?”, perguntava-se o dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Essa é a pergunta que motiva esse blog a desembaraçar o noticiário internacional – e o nacional, também, quando for pertinente – e a lançar luz sobre fatos e conexões que não receberam a atenção devida. Esse é um blog que quer surpreender, escrito por alguém que gosta de ser surpreendido.