Topo

Diogo Schelp

Cristina Kirchner imita Putin ao nomear Alberto Fernández

Diogo Schelp

21/05/2019 11h15

Cristina e Fernández

A então presidente Cristina Kirchner com o chefe de gabinete Alberto Fernandez em Buenos Aires, em 2008. (Foto: Marcos Brindicci/Reuters)

"O que ocorreu comigo foi um ato de estupidez política de uma pessoa cuja própria intolerância a levou a cometer um excesso." Essa frase foi dita em maio de 2012 por Alberto Fernández à jornalista brasileira Tatiana Gianini. A "pessoa" intolerante a que se referia Fernández era a então presidente argentina Cristina Kirchner, de quem ele havia sido chefe de gabinete. E o "ato de estupidez", ocorrido dois meses antes, foi um daqueles episódios surreais típicos da mentalidade bolivariana: Fernández estava despejando críticas à ex-chefe em uma entrevista a um canal de TV a cabo quando, subitamente, a programação foi tirada do ar.

Como em um tango, em que os dançarinos parecem simular brigas e reconciliações em série, Alberto Fernández e Cristina Kirchner fizeram as pazes onze anos depois (ele saiu do governo dela em 2008) e agora são parceiros de chapa na campanha para as eleições presidenciais que acontecem em outubro deste ano. Com um detalhe inusitado: Cristina lidera as pesquisas de intenção de voto com uma pequena margem de vantagem sobre o atual presidente Mauricio Macri, que vai tentar a reeleição, mas decidiu disputar como candidata a vice, nomeando Fernández, seu antigo desafeto, como o número 1 da chapa.

A lógica da manobra surpreendente de Cristina Kirchner assemelha-se à estratégia de perpetuação no poder adotada por Vladimir Putin, na Rússia, nas últimas duas décadas. Nesse período, o russo intercalou mandatos presidenciais (está no terceiro) com o cargo de primeiro-ministro (que ocupou duas vezes). No sistema político da Rússia, o presidente tem mais poder que o primeiro-ministro. Putin tinha cacife para mudar as regras do jogo e eliminar a proibição de ocupar dois mandatos seguidos como presidente, a exemplo do que ocorreu na Venezuela de Hugo Chávez, mas não o fez por dois motivos: primeiro, para dar um verniz de democracia ao seu regime, e, segundo, para não se desgastar politicamente. Sua maior jogada foi quando elegeu Dmitri Medvedev como seu sucessor na presidência, em 2008, apenas para ser nomeado por ele, em seguida, como primeiro-ministro. Durante o mandato de Medvedev, quem de fato dava as cartas no governo era Putin, apesar do cargo de menor relevo.

O kirchnerismo fez algo semelhante, na mesma época. Néstor Kirchner poderia ter concorrido à reeleição em 2007, mas preferiu colocar a primeira-dama no páreo. Quando terminou seu segundo mandato, em 2015, Cristina Kirchner aventou, nos bastidores, a possibilidade de colocar o filho Máximo como candidato. Mas ele não tinha carisma algum e, ao final, o candidato governista acabou sendo Daniel Scioli, que foi derrotado por Macri.

Ao indicar Fernández como candidato presidencial do kirchnerismo, Cristina procura remover dois obstáculos para sua volta ao poder. O primeiro é o inconveniente de estar sendo julgada, a partir desta semana, por corrupção envolvendo obras públicas em seu governo. Outros processos já foram iniciados e podem resultar em julgamentos ainda este ano. Como senadora, Cristina não pode ser presa. Se sua chapa presidencial por eleita, ela terá imunidade parlamentar por mais quatro anos, pois, na Argentina, o vice-presidente também é presidente do Senado. O julgamento, porém, poderia atrapalhar Cristina em sua campanha presidencial, se ela estivesse no foco da disputa. Como candidata a vice, ela pode dar um passo atrás, mantendo os holofotes em Alberto Fernández, mas continuar comandando o jogo.

O segundo obstáculo é a rejeição ao seu nome. O governo de Cristina Kirchner foi prejudicial ao país, porque marcou a volta da inflação e do aumento da pobreza. Num segundo turno com Macri, os indecisos podem optar por reeleger o atual presidente apenas para não ter um novo governo de Cristina Kirchner. Uma forma de evitar esse risco é unir o campo peronista, do qual Cristina faz parte, já antes do primeiro turno. Para isso, o nome de Alberto Fernández é fundamental. Exímio articulador político, Fernández transita bem entre os outros possíveis candidatos peronistas. Entre eles está Sergio Massa, que em algumas pesquisas aparece em terceiro lugar e de quem Fernández se aproximou depois de brigar com Cristina, em 2008.

O pedido de demissão de Alberto Fernández se deu em meio à primeira crise do governo de Cristina Kirchner, que havia iniciado uma guerra com os produtores rurais argentinos ao tentar impor o aumento dos impostos para o setor agropecuário. A elevação da tributação para o campo foi barrada pelo Senado. Cristina se desentendeu com Fernández porque cabia a ele a negociação com os parlamentares.

Com a saída de seu chefe de gabinete, Cristina continuou tendo o marido e antecessor como conselheiro político. Em 2010, porém, Néstor Kirchner morreu de ataque cardíaco. A partir desse momento, a falta do negociador Alberto Fernández se fez sentir com mais força.

Fernández é considerado o mais kirchnerista dos políticos kirchneristas. Ele conheceu Néstor em 1996, depois de passar por postos técnicos do governo de Carlos Menem. Atuou pela eleição de Kirchner à presidência em 2003 e foi seu chefe de gabinete durante todo o seu mandato.

Advogado e professor de direito penal e processual, Alberto Fernández não tem o brilho e o carisma de um grande líder peronista, mas sabe navegar como poucos o turbulento oceano da política argentina, mantendo laços com seu principais comandantes. Para Cristina Kirchner, a "intolerante", parece perfeito.

Sobre o Autor

Diogo Schelp é jornalista com 20 anos de experiência. Foi editor executivo da revista VEJA e redator-chefe da ISTOÉ. Durante 14 anos, dedicou-se principalmente à cobertura e à análise de temas internacionais e de diplomacia. Fez reportagens em quase duas dezenas de países. Entre os assuntos investigados nessas viagens destacam-se o endurecimento do regime de Vladimir Putin, na Rússia, o narcotráfico no México, a violência e a crise econômica na Venezuela, o genocídio em Darfur, no Sudão, o radicalismo islâmico na Tunísia e o conflito árabe-israelense. É coautor dos livros “Correspondente de Guerra” (Editora Contexto, com André Liohn) e “No Teto do Mundo” (Editora Leya, com Rodrigo Raineri).

Sobre o Blog

“O que mantém a humanidade viva?”, perguntava-se o dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Essa é a pergunta que motiva esse blog a desembaraçar o noticiário internacional – e o nacional, também, quando for pertinente – e a lançar luz sobre fatos e conexões que não receberam a atenção devida. Esse é um blog que quer surpreender, escrito por alguém que gosta de ser surpreendido.