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Diogo Schelp

Projeto de Bolsonaro sobre trânsito é mais perigoso do que o sobre armas

Diogo Schelp

05/06/2019 11h21

Acidente

Acidente de trânsito com moto em São Paulo (Foto: Zanone Fraissat/Folhapress)

O trânsito brasileiro é um dos que mais mata no mundo. A proporção de óbitos em acidentes viários no país é de 18,4 por 100.000 habitantes, o que nos coloca no patamar de países como a Malásia. Na Argentina, para se ter uma ideia, a taxa é de 12 por 100.000 habitantes. No Chile, 10,5. Na Noruega, que tem o trânsito mais seguro do mundo, a taxa de óbitos é de 2 por 100.000 habitantes (dados de 2017).

O trânsito só não mata mais do que armas de fogo no Brasil. Em 2017, quando as armas de fogo provocaram a morte de mais de 47.000 brasileiros, outros 35.ooo cidadãos morreram em acidentes nas ruas e estradas do país.

Ao contrário do ocorre com as mortes violentas causadas por revólveres, pistolas, espingardas e fuzis, houve avanços na redução de óbitos no trânsito nos últimos anos. Entre 2010 e 2016, o número de mortes no trânsito brasileiro caiu 12,8%. E isso apesar da frota de veículos ter crescido no período.

O que foi feito para deixar o trânsito mais seguro e salvar vidas? Basicamente, aumentaram-se a fiscalização e a punição aos infratores. As mortes diminuíram porque condutores imprudentes sabem que podem ser multados e perder a Carteira Nacional de Habilitação (CNH) se dirigirem alcoolizados, se não usarem capacete em motos ou se excederem o limite de velocidade.

Agora, sem nenhum estudo técnico, o presidente Jair Bolsonaro resolveu apresentar ao Congresso um projeto que torna o Código de Trânsito Brasileiro menos duro com motoristas infratores. Isso vindo de um político que, em segurança pública, se diz linha-dura.

Quando se trata de segurança viária, Bolsonaro é linha-mole. O problema é que isso vai custar a vida de brasileiros.

Os pontos mais problemáticos das mudanças na lei propostas pelo presidente são o aumento do limite de pontos para a suspensão da CNH, de 20 para 40, e a abolição da multa para quem dispensar as cadeirinhas de criança e para motociclistas que não usarem capacete.

O dano da primeira medida é autoexplicativo. Motoristas que excedem o limite de pontos representam uma minoria de 5% do total de cidadãos habilitados. Agora, eles terão um limite maior e poderão cometer mais infrações, colocando mais gente em risco, antes de perder a carteira.

O fim da multa para quem não colocar as crianças em cadeirinhas apropriadas é um retrocesso comprovado por inúmeros estudos. A ausência da cadeirinha eleva em 75% o risco de morte da criança em caso de acidente.

A falta de punição para motociclistas que não usarem capacete também tem o potencial de aumentar os óbitos. As motos são responsáveis por 4 em cada 10 mortos no trânsito brasileiro (outros 3 são motoristas e passageiros de automóveis, 2 são pedestres e 1 cai na conta de ciclistas e ocupantes de caminhões e ônibus). A região do país onde a proporção de motociclistas mortos é maior é o Nordeste (55% dos óbitos), onde a fiscalização de uso de capacete e de habilitação é menos rígida (dados de 2016).

As iniciativas do governo para flexibilizar a posse e o porte de armas podem ter um efeito negativo sobre as estatísticas de mortes violentas, mas a mudança no Código de Trânsito é mais perigosa porque mexe em uma lei que vinha dando resultados e porque é uma das poucas áreas da sociedade brasileira sobre as quais o poder público consegue ter algum controle. O Estado brasileiro não consegue recolher as armas ilegais nas mãos de bandidos, mas consegue apreender veículos que estão sendo conduzidos por motoristas sem habilitação. Isso salva vidas.

Quantas pessoas a mais precisarão morrer no trânsito para o governo se dar conta de que está cometendo um erro?

 

Sobre o Autor

Diogo Schelp é jornalista com 20 anos de experiência. Foi editor executivo da revista VEJA e redator-chefe da ISTOÉ. Durante 14 anos, dedicou-se principalmente à cobertura e à análise de temas internacionais e de diplomacia. Fez reportagens em quase duas dezenas de países. Entre os assuntos investigados nessas viagens destacam-se o endurecimento do regime de Vladimir Putin, na Rússia, o narcotráfico no México, a violência e a crise econômica na Venezuela, o genocídio em Darfur, no Sudão, o radicalismo islâmico na Tunísia e o conflito árabe-israelense. É coautor dos livros “Correspondente de Guerra” (Editora Contexto, com André Liohn) e “No Teto do Mundo” (Editora Leya, com Rodrigo Raineri).

Sobre o Blog

“O que mantém a humanidade viva?”, perguntava-se o dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Essa é a pergunta que motiva esse blog a desembaraçar o noticiário internacional – e o nacional, também, quando for pertinente – e a lançar luz sobre fatos e conexões que não receberam a atenção devida. Esse é um blog que quer surpreender, escrito por alguém que gosta de ser surpreendido.