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Diogo Schelp

Chernobyl, Caputová e o papel do ambientalismo na queda do comunismo

Diogo Schelp

17/06/2019 15h24

Zuzana Caputova

Zuzana Caputova, a nova presidente da Eslováquia (Foto: Goldman Environmental Prize/Divulgação)

No final do primeiro episódio da série "Chernobyl", da HBO, um pássaro cai do céu e agoniza no chão por onde acabou de passar um grupo de crianças a caminho da escola. A cena se passa na manhã seguinte ao acidente na usina nuclear da então União Soviética, em território ucraniano. Trata-se de uma metáfora das consequências políticas do desastre de Chernobyl, ocorrido em 26 de abril de 1986: atribui-se a ele o começo da derrocada do comunismo. Um fato pouco conhecido é que a insatisfação com questões ambientais no antigo bloco soviético é anterior à tragédia nuclear, tendo sido inclusive um dos elementos catalisadores do movimento civil da Alemanha Oriental que desembocou na queda do Muro de Berlim, em 1989.

A tradição política dos ambientalistas do Leste Europeu manteve-se desde então e ajudou a alavancar a carreira de personalidades como Zuzana Caputová. Recém-empossada como presidente da Eslováquia, ela é a primeira mulher a ocupar o cargo deste país que, nos tempos da Cortina de Ferro, fazia parte da República Socialista da Checoslováquia. Zuzana, de 45 anos, tornou-se conhecida por ter, durante treze anos, liderado um movimento para fechar um aterro sanitário tóxico em sua cidade natal, Pezinok. Por seu ativismo, recebeu em 2016 um dos principais prêmios ambientais do mundo, o Goldman Prize.

O apelo político de ativistas como Zuzana Caputová não está apenas no benefício para a qualidade de vida da população da causa que eles defendem, mas também no fato de que eles incorporam o papel de combatentes da opressão, enfrentando políticos e grupos poderosos. (No caso de Zuzana, ela enfrentou empresários com vínculos com a máfia italiana.) Assim também eram vistos os cidadãos que ousavam defender causas ambientais nos tempos do comunismo. 

Na Alemanha Oriental, os ativistas do meio ambiente já eram ativos na década de 70, engajando-se em ações sutis (mas ainda assim provocativas do ponto de vista do Estado policial que então vigorava), como mutirões para plantar árvores ou manifestações silenciosas em bicicletas — sem cartazes, apenas máscaras para fazer alusão ao ar poluído.

Ativista ambiental faz protesto silencioso de bicicleta, na Alemanha Oriental (Arquivo/Divulgação)

Ar poluído? Sim, o ar da Alemanha Oriental era um veneno. A emissão per capita de dióxido de enxofre na Alemanha Oriental era dez vez maior do que a da capitalista e muito mais industrializada Alemanha Ocidental. Quatro em cada dez alemães da república socialista viviam em regiões onde a concentração da substância era superior aos limites seguros para a saúde.

O contraste ambiental entre o capitalismo e o comunismo era visível na paisagem de Berlim. No inverno, do lado oriental da cidade dividida pelo Muro, as residências soltavam uma fumaça preta, resultado da queima de carvão para o aquecimento. No lado ocidental, a calefação era abastecida com gás encanado, muito mais seguro e ecológico. Como consequência, a Alemanha Oriental emitia o dobro do gás carbônico da Alemanha Ocidental.

Os recursos hidrográficos da Alemanha Oriental também eram extremamente poluídos. Depois que o Muro de Berlim caiu, descobriu-se que apenas 2% dos rios e 1% dos lagos não estavam contaminados. A razão é simples: as indústrias (todas estatais, evidentemente) tinham de cumprir as metas de produção definidas pelo partido do jeito que desse, e não havia nada que as impedisse de despejar os rejeitos nos rios, sem tratamento algum. As leis do país determinavam a proteção do meio ambiente, até porque a narrativa do partido era de que destruição da natureza era coisa de capitalista. Mas, na prática, é claro que o Estado não iria fiscalizar e punir a si mesmo por violar as leis ambientais.

Ao longo de 1989, alguns dissidentes da cidade de Leipzig — que haviam começado a se reunir em igrejas luteranas com o intuito de discutir problemas ambientais — começaram a fazer protestos semanais, sempre às segundas-feiras. Eles se sentiam mais seguros para fazer isso por causa de algo que havia acontecido em maio daquele ano na Hungria, onde o governo reformista havia mandado desativar a cerca elétrica na fronteira com a Áustria, abrindo o primeiro rombo da Cortina de Ferro que separava o mundo socialista e o capitalista. Como Moscou não enviou tanques, ficou claro para os alemães e para outros povos do Leste Europeu que o presidente soviético Mikhail Gorbachev não estava disposto a reprimir militarmente eventuais aberturas políticas que ocorressem em seus satélites no Leste Europeu.

Inicialmente, as manifestações de segunda-feira em Leipzig ("Montagsdemos", como eram chamadas) reuniam algumas dezenas de pessoas e faziam exigências ambientais, como o fim da poluição do rio Pleisse. Pouco a pouco, incorporaram reivindicações como o direito de viajar para fora do país e liberdade de imprensa. Em outubro de 1989, 70.000 pessoas compareceram ao protesto. Na semana seguinte, 120.000 manifestantes foram as ruas de Leipzig, o equivalente a 25% da população da cidade, aos gritos de "nós somos o povo".

O governo comunista se desesperou e, duas semanas depois, divulgou, em termos vagos, a intenção de instituir uma nova lei permitindo aos cidadãos viajar para fora do país. Depois de uma coletiva de imprensa atrapalhada para explicar a autorização, correu o boato de que a regra era de efeito imediato e os berlinenses orientais foram aos postos de controle exigindo aos guardas que os deixassem cruzar para o lado ocidental. Os guardas, sem saber o que fazer, acabaram cedendo. Na empolgação, surgiram as picaretas para derrubar a barreira de concreto. E assim, no dia 9 de novembro de 1989, caiu o Muro de Berlim e, com ele, a utopia do socialismo.

O acidente em Chernobyl ajudou a causa dos ambientalistas da Alemanha Oriental porque reforçou, junto ao restante da população, algo que eles vinham dizendo há muito tempo: o Estado não estava nem aí para a questão ambiental. Os alemães orientais ficaram sabendo da real extensão da tragédia na usina por meio da mídia ocidental. Ficou claro, então, que a União Soviética e os regimes tuteladas por ela não estavam preocupados em proteger a vida da população, apenas em esconder os próprios erros para resguardar seu sistema político.

Na União Soviética, o impacto de Chernobyl na opinião pública foi potencializado pelo fato de que Gorbachev havia iniciado sua política de glasnost ("transparência") alguns meses antes. Gorbachev queria salvar o regime comunista, não desmontá-lo. Mas Chernobyl acabou com seus planos de fazer uma reforma gradual no sistema, pois demonstrou de modo brutal que a ineficiência do Estado chegava ao ponto de criar uma ameaça nova, misteriosa, invisível e irrefreável: a radiação. Não existiam discursos patrióticos ou apelos ideológicos capazes de aplacar o pânico — e a desconfiança — dos camaradas.

 

Sobre o Autor

Diogo Schelp é jornalista com 20 anos de experiência. Foi editor executivo da revista VEJA e redator-chefe da ISTOÉ. Durante 14 anos, dedicou-se principalmente à cobertura e à análise de temas internacionais e de diplomacia. Fez reportagens em quase duas dezenas de países. Entre os assuntos investigados nessas viagens destacam-se o endurecimento do regime de Vladimir Putin, na Rússia, o narcotráfico no México, a violência e a crise econômica na Venezuela, o genocídio em Darfur, no Sudão, o radicalismo islâmico na Tunísia e o conflito árabe-israelense. É coautor dos livros “Correspondente de Guerra” (Editora Contexto, com André Liohn) e “No Teto do Mundo” (Editora Leya, com Rodrigo Raineri).

Sobre o Blog

“O que mantém a humanidade viva?”, perguntava-se o dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Essa é a pergunta que motiva esse blog a desembaraçar o noticiário internacional – e o nacional, também, quando for pertinente – e a lançar luz sobre fatos e conexões que não receberam a atenção devida. Esse é um blog que quer surpreender, escrito por alguém que gosta de ser surpreendido.