Sabatina marca transição definitiva do Moro juiz para o Moro político
Desde que seu nome foi anunciado para o Ministério da Justiça e Segurança Pública, após a eleição de Jair Bolsonaro, o agora ex-juiz federal Sergio Moro comportava-se como um estranho no ninho da política. Como alertaram muitos analistas, foi uma jogada arriscada de Moro aceitar o convite, mesmo que estivesse mirando em uma vaga futura no Supremo Tribunal Federal (STF). Afinal, na política, a vidraça de seus protagonistas é muito maior do que na Justiça, em que a estabilidade de emprego e a blindagem institucional (expressa na autonomia administrativa e financeira) são alguns dos elementos que garantem a independência do terceiro poder. Os juízes necessitam de condições para fazer os julgamentos isentos de pressão, tanto da sociedade, quanto de agentes econômicos ou políticos.
Uma prova de que a vidraça do Judiciário é menor do que a dos políticos é que a imprensa brasileira tem por tradição pegar leve com decisões judiciais equivocadas. Os jornalistas costumam se sentir à vontade para criticar duramente a sentença mal-ajambrada de um juiz, mas raramente o juiz em si — a não ser quando ele é flagrado cometendo delitos. Ou seja, a imunidade do juiz ao proferir suas decisões é algo a ser respeitada.
Na política, tudo muda. Sofrer pressão é o estado normal da atividade. Nos últimos meses, Moro enfrentou percalços e derrotas, principalmente no relacionamento com o Congresso para a aprovação do seu pacote anticrime e nas discordâncias de bastidores com o presidente Bolsonaro na questão do decreto de armas, mas o ministro ainda não havia, de fato, enfrentado pressão. Em muitos aspectos ele era visto por seus colegas de gabinete e pelos parlamentares como o juiz que entrou de gaiato na política, não como um dos seus.
O depoimento desta quarta-feira (19) na Comissão de Constituição e Justiça do Senado representa o momento definitivo da transição do Moro juiz para o Moro político. Ao juiz não é dada a licença para mentir ou escamotear informações. Para o político, no entanto, o compromisso com a verdade é um conceito muito elástico. Mesmo aquele que não mente escancaradamente exerce o direito implícito de apresentar versões ou interpretações alternativas dos fatos.
Na pele do interrogado, e não mais do interrogador que assumia como juiz, Moro exercitou-se na arte de dizer que certos fatos não são graves, ainda que não reconheça os fatos exatamente como são. Ele diz que as mensagens trocadas entre ele e os procuradores da Lava Jato podem ou não ser verídicas. Isso significa que Moro se sente apto a eximir-se de responsabilidade sobre conversas que ele sequer reconhece como verdadeiras ou não.
Só mesmo um político para conseguir fazer um contorcionismo de raciocínio como esse. Lembra-me o ex-presidente americano Bill Clinton dizendo na TV que não fez sexo com a estagiária da Casa Branca, ainda que tenha feito com ela coisas que costumam ser definidas como sexo.
Outra tática própria de políticos a que Moro recorreu é atribuir culpa aos mensageiros. Repetidas vezes ele qualificou como notícias "sensacionalistas" os vazamentos de suas conversas pelo site The Intercept. Não há dúvida de que o site tem um viés político claro. Mas as conversas vazadas têm, em si, valor jornalístico inegável, independente dos adjetivos que os autores da reportagem utilizaram na hora de interpretá-las e contextualizá-las.
Os "esclarecimentos" prestados no Senado também demonstram que Moro, como é tradição entre os políticos brasileiros, está disposto a aferrar-se ao cargo ao custo de qualquer argumento, cabível ou não, como se o pedido de demissão pudesse representar uma prova de culpa.
Se Moro sair desta crise mais forte politicamente do que entrou, Bolsonaro pode começar a olhar para os lados e vê-lo seriamente como um adversário para 2022.
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