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Diogo Schelp

Foto chocante faz refletir sobre os mitos da imigração ilegal nos EUA

Diogo Schelp

26/06/2019 12h16

Os corpos do imigrante de El Salvador e sua filha, que se afogaram no Rio Grande, fronteira com os Estados Unidos (Foto: Julia Le Duc/AP)

O que você vê na foto acima, tirada às margens do Rio Grande, na fronteira do México com os Estados Unidos? Um bandido latino-americano que tentava entrar em território americano para aterrorizar as cidades, estuprar mulheres e vender drogas? Ou um pai de família que assumiu uma decisão desesperada e temerária (pode-se até dizer irresponsável), de trágicas consequências, com o objetivo de escapar da miséria de seu país e encontrar um futuro melhor para sua filha?

Eu vejo a segunda situação.

O registro feito no domingo (23) pela fotógrafa mexicana Julia Le Duc mostra os corpos de Óscar Alberto Martínez Ramírez, um imigrante de 25 anos de El Salvador, e de sua filha Valéria, de 23 meses. Ramírez e sua família estavam há meses esperando do lado mexicano da fronteira pela oportunidade de apresentar-se às autoridades de imigração americana, na esperança de conseguir autorização para entrar legalmente no país. Com o passar do tempo, ele começou a ter a convicção de que isso nunca aconteceria e decidiu atravessar a fronteira a nado. Primeiro, cruzou o rio com a filha nos braços, com sucesso. Deixou-a na margem do rio, já em território americano, e voltou para ajudar sua mulher, Tania Vanessa Ávalos, de 21 anos. Valéria, porém, apenas um bebê, incapaz de compreender a situação, apavorou-se ao se ver sozinha na margem do rio e pulou na água, atrás do pai. Ele ainda retornou para salvá-la, mas os dois acabaram tragados pela correnteza, enquanto Tania assistia a tudo. 

O bracinho da menina em torno do pescoço do pai, a fralda encharcada por baixo da calça vermelha, os sapatinhos que haviam atingido por apenas breves instantes o destino sonhado por seu pai, os rostos virados para baixo… tudo isso faz recordar a imagem de outro pequeno imigrante afogado que rodou o mundo em 2015, o sírio Aylan Kurdi, de 3 anos, encontrado em uma praia na Turquia, de onde sua mãe esperava alcançar a Europa em um bote que afundou.

A cena também me faz lembrar que são falsos todos os argumentos usados pelo presidente Donald Trump para justificar seu empenho em fazer do combate à imigração uma prioridade. Os imigrantes não são a causa dos males modernos dos Estados Unidos. Menos de 6% da população carcerária americana é formada por estrangeiros, que por sua vez representam 13,7% de todos os habitantes do país. Ou seja, os imigrantes são menos propensos a cometer crimes nos Estados Unidos.

Além disso, os imigrantes ilegais representam menos da metade dos estrangeiros vivendo no país.

Também não é verdade que os imigrantes estão inundando o país. Em números absolutos, o fluxo migratório aumentou nas últimas décadas, mas os Estados Unidos já tiveram populações estrangeiras proporcionalmente maiores no passado. Enquanto atualmente os imigrantes representam 13,7% da população, como já foi dito acima, no início do século passado, mais precisamente em 1910, a proporção era de 14,7%. Durante aquele período de migração em massa para as Américas, para se ter uma ideia, o Brasil tinha 7,3% de imigrantes e a Argentina, impressionantes 29,9%.

A diferença é que naquela época os imigrantes vinham principalmente de países europeus. Atualmente, vêm da América Latina e, cada vez, mais, da África.

Outra diferença é que, naquele tempo, o fluxo de emigrantes ajudou a reduzir a pobreza nos países europeus. Nos dias de hoje, por causa das grandes populações locais, a emigração não basta para reduzir a miséria nos países de origem.

Em 2005, Jeffrey G. Williamson, pesquisador da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, e Timothy J. Hatton, da Universidade Nacional Australiana, lançaram um livraço intitulado Global Migration and the World Economy ("Migração Global e a Economia Mundial", sem tradução em português), em que demonstram cientificamente que não passa de um mito a afirmação de que a imigração é economicamente prejudicial aos países de destino. Eles concluem o livro com a seguinte afirmação:

"Não há, nem nunca houve, migração global em excesso. O mundo claramente estaria melhor se houvesse mais migração. O problema não é migração global em demasia, mas o fato de que não temos ainda meios efetivos para que os ganhadores da migração global compensem os perdedores. O problema não é a migração global. O problema é a falta de vontade política."

Que a triste imagem de Óscar Alberto e sua filha Valéria incentive governantes de todo mundo a procurar soluções menos preguiçosas para um fenômeno que simplesmente não vai deixar existir com a construção de muros.

Sobre o Autor

Diogo Schelp é jornalista com 20 anos de experiência. Foi editor executivo da revista VEJA e redator-chefe da ISTOÉ. Durante 14 anos, dedicou-se principalmente à cobertura e à análise de temas internacionais e de diplomacia. Fez reportagens em quase duas dezenas de países. Entre os assuntos investigados nessas viagens destacam-se o endurecimento do regime de Vladimir Putin, na Rússia, o narcotráfico no México, a violência e a crise econômica na Venezuela, o genocídio em Darfur, no Sudão, o radicalismo islâmico na Tunísia e o conflito árabe-israelense. É coautor dos livros “Correspondente de Guerra” (Editora Contexto, com André Liohn) e “No Teto do Mundo” (Editora Leya, com Rodrigo Raineri).

Sobre o Blog

“O que mantém a humanidade viva?”, perguntava-se o dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Essa é a pergunta que motiva esse blog a desembaraçar o noticiário internacional – e o nacional, também, quando for pertinente – e a lançar luz sobre fatos e conexões que não receberam a atenção devida. Esse é um blog que quer surpreender, escrito por alguém que gosta de ser surpreendido.