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Diogo Schelp

Bolsonaro, a exemplo de Lula, se rende ao hidropopulismo paraguaio

Diogo Schelp

01/08/2019 17h32

Entra governo, sai governo, e em Assunção segue vigorando o hidropopulismo como principal traço da política paraguaia. O presidente Mario Abdo Benítez, o Marito, foi eleito no ano passado prometendo justamente "recuperar a soberania de Itaipu", o que na linguagem do hidropopulismo significa renegociar as condições do tratado que rege o funcionamento da usina hidrelétrica de Itaipu, na fronteira com o Brasil. Os paraguaios acreditam na lenda de que os termos do tratado permitiram ao Brasil roubá-los ao longo do tempo, pagando mais barato pela energia excedente que o Paraguai não consegue consumir. Essa crença alimenta as manifestações patrióticas no país e é explorada por políticos de todas as vertentes — que acabam contando com a benevolência de sucessivos governos brasileiros para obter condições melhores na revenda da energia. Foi assim com os presidentes Lula e Dilma Rousseff, e está se repetindo com Jair Bolsonaro, que acaba de apoiar a cancelamento, por parte de Marito, de um acordo bilateral fechado em maio e que estabelecia condições mais justas para a compra da energia pelo Brasil. Bolsonaro fez isso para salvar a pele de Marito, que estava prestes a sofrer um impeachment, da mesma forma que Lula aceitou pagar mais pela energia, em 2009, para ajudar o então presidente paraguaio Fernando Lugo.

Só tem um jeito de acabar com isso: liberando o Paraguai para revender a energia excedente para quem quiser, mas desobrigando o Brasil de ser o comprador. O resultado disso é que o Brasil vai conseguir pagar um preço mais baixo pela energia, e os paraguaios vão descobrir que estavam reclamando de barriga cheia.

Primeiro, voltemos no tempo para entender o que está em jogo. Explica Wagner Enis, diretor do Instituto de Estudos Econômicos e Sociais do Paraguai (Ineespar): "O Tratado de Itaipu, assinado em 1973, diz que as duas partes se obrigam, individual ou conjuntamente, a consumir a totalidade da energia produzida por Itaipu. Como o Paraguai não tem condições de consumir sua parte da energia, e Itaipu só pode vender para a Ande (a estatal elétrica paraguaia) ou para a Eletrobrás, o Brasil se obriga a comprar a energia excedente do Paraguai. Ainda que essa energia seja, como muitas vezes foi, mais cara do que outras fontes de eletricidade. As distribuidoras de energia elétrica do Brasil têm uma cota mínima para comprar de Itaipu. Isso garante a sustentabilidade de Itaipu no pagamento da dívida e dos gastos operacionais. Isso tudo vai ser revisto em 2023, como prevê o tratado."

Seguindo com a explicação de Enis: "O espírito de Itaipu é a igualdade em tudo, inclusive no preço vendido aos dois países. Quando foi assinado o tratado, a potência mínima que Itaipu deveria produzir por ano era 75 milhões de megawatts-hora (MWh). É a chamada 'energia garantida'. Sobre esse número, incidem todos os gastos de Itaipu: gastos operacionais, dívidas, pagamentos aos sócios Ande e Eletrobrás e royalties. Sobre o excedente da energia garantida — ou seja, sobre cerca de 15 milhões de MWh, incidem apenas o royalties. Com isso, a energia garantida tem um custo muito mais alto do que a energia produzida adicionalmente por Itaipu. A energia produzida adicionalmente está na faixa dos 5,5 dólares por MWh, enquanto a garantida custa cerca de sete vezes mais. Pela regra, o país que adquirisse a porcentagem de, por exemplo, 10% da energia garantida, tinha direito a 10% da energia adicional mais barata. Era a mesma tarifa para os dois países."

Voltei. Acontece que, anos atrás, a Ande, estatal de energia, estava quase quebrada. Em 2003, os governos brasileiro e paraguaio firmaram um acordo para que, durante determinado tempo, a Ande pudesse incluir uma maior quantidade de energia barata, o excedente, na composição da sua tarifa, com o compromisso de que retomasse o padrão definido pelo tratado gradualmente, até conseguir se reequilibrar financeiramente. Chegou um momento em que a Ande retirava 60% de energia barata de Itaipu, do excedente, e 40% de energia cara. Ou seja, o consumidor brasileiro estava pagando para que os paraguaios usufruíssem de energia mais barata.

O tempo passou e a Ande não retomou a tarifa. Em 2007, o acordo foi renovado mas com a ressalva de que, anualmente, essa porcentagem seria revista. Em 2009, Lula fez novo acordo, dessa vez com Lugo, triplicando o valor pago pelo Brasil pela energia cedida pelo Paraguai.

A tarifa paga pelo Paraguai no âmbito do acordo de 2007 só aumentou no governo Horacio Cartes, em uns 10%. Não foi o suficiente para corrigir o desequilíbrio. No ano passado, os brasileiros pagaram, em média, 58% mais caro pela eletricidade de Itaipu do que os paraguaios. 

Bolsonaro prometeu corrigir isso. A ata assinada com Marito em maio tinha esse objetivo. A oposição paraguaia, porém, considerou isso uma traição. Não ajudou o fato de o presidente do Paraguai ter mantido as negociações em sigilo. Ao apoiar a volta atrás de Marito, Bolsonaro passou a impressão de que o Brasil tinha feito algo errado. Não fez.

Agora, o debate no Brasil deveria se concentrar na negociação do tratado em 2023. Uma opção seria o Brasil liberar a venda de energia de Itaipu para países terceiros o quanto antes, antecipando a renegociação do anexo C do tratado. Atualmente, o Brasil é obrigado a pagar o preço estipulado, muito mais alto. E o Paraguai não tem condição de vender para outros mercados, nem de consumir toda a energia. Liberando a venda, o Brasil pagaria o que quisesse para o Paraguai. Ou o Paraguai simplesmente deixaria de vender, prejudicando as contas públicas, pois 20% do orçamento do Estado é composto pelas receitas de Itaipu. A posição brasileira deveria ser de liberar a venda, contanto que se encerrasse a cláusula de obrigatoriedade das duas partes de ter que comprar a energia. Talvez assim o Paraguai desse o devido valor à transferência de dinheiro que o Brasil realiza com a compra daquilo que os vizinhos não conseguem consumir.

Esse pode ser o antídoto para o hidropopulismo paraguaio.

 

 

Sobre o Autor

Diogo Schelp é jornalista com 20 anos de experiência. Foi editor executivo da revista VEJA e redator-chefe da ISTOÉ. Durante 14 anos, dedicou-se principalmente à cobertura e à análise de temas internacionais e de diplomacia. Fez reportagens em quase duas dezenas de países. Entre os assuntos investigados nessas viagens destacam-se o endurecimento do regime de Vladimir Putin, na Rússia, o narcotráfico no México, a violência e a crise econômica na Venezuela, o genocídio em Darfur, no Sudão, o radicalismo islâmico na Tunísia e o conflito árabe-israelense. É coautor dos livros “Correspondente de Guerra” (Editora Contexto, com André Liohn) e “No Teto do Mundo” (Editora Leya, com Rodrigo Raineri).

Sobre o Blog

“O que mantém a humanidade viva?”, perguntava-se o dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Essa é a pergunta que motiva esse blog a desembaraçar o noticiário internacional – e o nacional, também, quando for pertinente – e a lançar luz sobre fatos e conexões que não receberam a atenção devida. Esse é um blog que quer surpreender, escrito por alguém que gosta de ser surpreendido.