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Diogo Schelp

Bolsonaro criou fake news para criticar Mais Médicos. Não precisava

Diogo Schelp

02/08/2019 16h13

Bolsonaro e Mourão

Jair Bolsonaro e o vice Hamilton Mourão no lançamento do programa Médicos pelo Brasil (Foto: Marcos Corrêa/PR)

Nesta quinta-feira (1º), em cerimônia de lançamento do programa Médicos pelo Brasil, criado para substituir o Mais Médicos da ex-presidente Dilma Rousseff, Jair Bolsonaro criou uma fake news (notícia falsa) para criticar o acordo entre Cuba e a governante petista. Bolsonaro disse que o objetivo do Mais Médicos era criar "núcleos de guerrilha no Brasil". Já está claro que o presidente brasileiro, a exemplo de seu ídolo americano Donald Trump, tem a desinformação como tática política. Mas é difícil entender por que ele precisa inventar histórias para desqualificar um acordo que já tinha defeitos reais de sobra.

Como sempre foi amplamente divulgado pela imprensa, o Mais Médicos, no governo do PT, usufruía da mão de obra dos profissionais de saúde cubanos em um sistema de semisservidão. O Brasil permitia que o regime cubano tratasse seus médicos como mercadorias de exportação, impondo a eles regras ditatoriais similares às vigentes na ilha comunista. Os médicos cubanos tinham que pedir autorização para viajar dentro do Brasil, mesmo se estivessem de folga, e ficavam com apenas 30% do salário pago pelos contribuintes brasileiros. O resto era abocanhado, na fonte, pelo regime cubano.

Jornalistas de diferentes veículos também não se cansaram de apresentar indícios de que o objetivo do Mais Médicos sempre foi o de, pura e simplesmente, financiar a sobrevivência do regime cubano. Em 2015, o Jornal da Band revelou, em reportagem de Fábio Pannunzio, áudios de uma reunião ocorrida em 2013 no Ministério da Saúde em que ficava claro que o governo brasileiro estava recorrendo à Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) como intermediadora do programa apenas para escamotear o verdadeiro objetivo do Mais Médicos, que era o de contratar Cuba para prestar os serviços médicos sem precisar obedecer às leis trabalhistas brasileiras. A possibilidade de médicos de outros países também se inscreverem no programa, como fica claro na gravação, foi aberta apenas para fingir que a preocupação do governo era mesmo atrair profissionais de qualquer nacionalidade, e não apenas cubanos, para trabalhar nos rincões do país.

Em novembro passado, reportagem da Folha de S.Paulo baseada em telegramas diplomáticos comprovou que o Mais Médicos foi proposto por Cuba e revelou que o governo brasileiro via no programa uma forma de injetar dinheiro na ditadura cubana para que a ilha honrasse o pagamento da dívida com o BNDES pela construção do Porto de Mariel. O calote no banco de desenvolvimento — e portanto nos contribuintes brasileiros — foi dado do mesmo jeito.

Uma hipótese para a afirmação de Bolsonaro sobre "núcleos de guerrilha" é a de que o presidente entrou no modo "nostalgia do regime militar" e não consegue mais sair dele. Depois de relativizar a tortura durante a ditadura, atacar a memória do pai do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e de fazer uma lambança no quadro da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, com a justificativa de que é "de direita", Bolsonaro quer reforçar o temor, compartilhado por muitos de seus seguidores, de que o Brasil está sob constante ameaça de uma revolução comunista.

Só faltava ele começar a propor a censura às pornochanchadas, gênero cinematográfico de sucesso na década de 70. Ops.

Sobre o Autor

Diogo Schelp é jornalista com 20 anos de experiência. Foi editor executivo da revista VEJA e redator-chefe da ISTOÉ. Durante 14 anos, dedicou-se principalmente à cobertura e à análise de temas internacionais e de diplomacia. Fez reportagens em quase duas dezenas de países. Entre os assuntos investigados nessas viagens destacam-se o endurecimento do regime de Vladimir Putin, na Rússia, o narcotráfico no México, a violência e a crise econômica na Venezuela, o genocídio em Darfur, no Sudão, o radicalismo islâmico na Tunísia e o conflito árabe-israelense. É coautor dos livros “Correspondente de Guerra” (Editora Contexto, com André Liohn) e “No Teto do Mundo” (Editora Leya, com Rodrigo Raineri).

Sobre o Blog

“O que mantém a humanidade viva?”, perguntava-se o dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Essa é a pergunta que motiva esse blog a desembaraçar o noticiário internacional – e o nacional, também, quando for pertinente – e a lançar luz sobre fatos e conexões que não receberam a atenção devida. Esse é um blog que quer surpreender, escrito por alguém que gosta de ser surpreendido.