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Diogo Schelp

O enfezamento geral da nação

Diogo Schelp

10/08/2019 20h27

Bolsonaro

Jair Bolsonaro (Foto:Tercio Teixeira/Folhapress)

Alerta etimológico: o título acima nada tem a ver com a desde já clássica declaração do presidente Jair Bolsonaro, feita nesta sexta-feira (9), de que, para poluir menos o meio ambiente, as pessoas poderiam "fazer cocô dia sim, dia não". Obedecer à orientação do nosso governante faria mal à saúde dos cidadãos, mas não os deixariam "enfezados". A palavra vem do latim infensátum, que significa "ser hostil a". Aquilo que o ocupante do Palácio do Planalto quer que se prenda nos intestinos por 48 horas vem de faecis, "sedimento". 

A dica ambiental de Bolsonaro deixaria os brasileiros, para a usar a palavra adequada, constipados. Enfezados já estão. Enfezados, ressentidos, irritados, ressabiados, virulentos, amargos, ásperos, enraivecidos, agastados, zangados, irascíveis. Uns com os outros. Já era assim antes da eleição de Bolsonaro, claro, e ninguém achou que ia melhorar com ele no poder. Estaria piorando? Estamos ainda mais azedos em nossa polarização?

O presidente liberou o verbo nas últimas semanas. Mais do que quando era candidato, quando os eleitores menos resolutos afirmavam que "ele era bronco mesmo, mas vai fazer a coisa certa e, além disso, tudo menos o PT". Nem o presidente americano Donald Trump, ídolo de Bolsonaro, quando sai à compra de inimizades, chega ao ponto de ofender os habitantes de uma região inteira de seu país, de baciada, como fez o brasileiro com o Nordeste.

O argumento agora é que não deveríamos nos fixar nas palavras do presidente, mas em seus atos. Que ele pode defender a constipação geral da nação, fazer pouco caso da tortura sofrida por vítimas da ditadura, afirmar que só falta ter uma cabeça maior para ser nordestino e ironizar jornalistas que todos os dias o acompanham em sua agenda para deixar a sociedade informada… enfim, que ele pode dizer o indizível sobre qualquer tema, mas o que importa é se vai aprovar as reformas que o país precisa.

Trata-se de uma sugestão tentadora. Seria ótimo passar alguns dias sem ter que comentar as últimas diatribes verbais do mandatário. Sem ter que fazer o público em geral se enfezar, se enfervecer, perder as estribeiras, balançar a cabeça, encolerizar-se, fremir de indignação com suas mais recentes declarações. Fixemos nossas atenções no Diário Oficial e nos trâmites do Congresso.

O problema é que as palavras têm peso, e as do presidente não estão soltas no espaço. Elas muitas vezes estão atreladas a medidas concretas que precisam ser compreendidas e analisadas, para que os cidadãos descubram o que o governo pretende com elas e como serão afetados. Todos querem saber se o governo vai ressuscitar a CPMF, por exemplo. Uma resposta atravessada a um repórter sobre isso não esclarece nada, apenas confunde.

Ou então assumimos que quem está no controle de tudo não é o capitão e que não precisamos mais escutá-lo. Ou então que ele é um estadista a portas fechadas, mas um péssimo porta-voz de si mesmo.

Paremos, então, de dar ouvidos ao presidente.

Suspeito, porém, que nem isso fará bem ao enfezamento geral da nação.

Sobre o Autor

Diogo Schelp é jornalista com 20 anos de experiência. Foi editor executivo da revista VEJA e redator-chefe da ISTOÉ. Durante 14 anos, dedicou-se principalmente à cobertura e à análise de temas internacionais e de diplomacia. Fez reportagens em quase duas dezenas de países. Entre os assuntos investigados nessas viagens destacam-se o endurecimento do regime de Vladimir Putin, na Rússia, o narcotráfico no México, a violência e a crise econômica na Venezuela, o genocídio em Darfur, no Sudão, o radicalismo islâmico na Tunísia e o conflito árabe-israelense. É coautor dos livros “Correspondente de Guerra” (Editora Contexto, com André Liohn) e “No Teto do Mundo” (Editora Leya, com Rodrigo Raineri).

Sobre o Blog

“O que mantém a humanidade viva?”, perguntava-se o dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Essa é a pergunta que motiva esse blog a desembaraçar o noticiário internacional – e o nacional, também, quando for pertinente – e a lançar luz sobre fatos e conexões que não receberam a atenção devida. Esse é um blog que quer surpreender, escrito por alguém que gosta de ser surpreendido.