Topo

Diogo Schelp

A favor da indústria da multa

Diogo Schelp

15/08/2019 15h06

Acidente

Acidente de carro em São Paulo causado por excesso de velocidade, em 2018 (Foto: Peter Leone/Futura Press/Estadão Conteúdo)

O presidente Jair Bolsonaro costuma dizer que armas não matam, quem mata são as pessoas que puxam o gatilho. Por analogia, carros também não matam. Quem mata são motoristas imprudentes e irresponsáveis. Em texto publicado nesta quinta-feira (15) no Diário Oficial da União, Bolsonaro tomou uma decisão que reduz a fiscalização que serve para coibir o comportamento perigoso de motoristas imprudentes: a retirada dos radares móveis de controle de velocidade em rodovias federais. Para os pés de chumbo, ficará mais fácil extrapolar os limites de velocidade nos trechos em que não há radares fixos (que, por enquanto, permanecem). Isso vai fazer toda a diferença no índice de mortes nas estradas brasileiras, por uma simples razão: o elemento surpresa é o que coíbe os irresponsáveis de acelerar demais quando não estão sendo vigiados.

Bolsonaro diz que há uma indústria, ou uma "máfia", de multas no Brasil. Há excessos na punição a infrações de trânsito? Sim, especialmente em situações que não oferecem risco a ninguém. Exemplo: um motorista está numa via urbana em que a única opção é virar à esquerda em outra rua, onde sequer há travessia de pedestres, e esquece de dar seta. É infração? É, e das graves, segundo o Código de Trânsito Brasileiro, ainda que nesse caso a penalidade pareça exagerada e desnecessária. Por outro lado, infrações que colocam pessoas diretamente em risco, como não parar em faixas de pedestres, raramente são fiscalizadas.

Ainda assim, é preferível alguns excessos na aplicação de multas do que a sua redução. Se para cada penalidade desnecessária de 200 reais for aplicada outra, de mesmo valor, que pode salvar uma vida, então a indústria de multas já terá valido a pena.

A maior parte das multas aplicadas no trânsito brasileiro são por desrespeito ao limite de velocidade. Já está mais do que comprovado que essa é uma medida que salva vidas. Cito aqui um estudo divulgado no ano passado pelo International Traffic Safety Data and Analysis Group (IRTAD), entidade ligada à OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico ou Econômico). Bolsonaro não está tão empenhado em conseguir a ajuda do presidente americano Donald Trump para que o Brasil seja aceito na OCDE? Então vale a pena começar a prestar atenção às recomendações de políticas públicas que a entidade fornece. E uma delas é que a fiscalização de velocidade deve ser ampliada, não reduzida. Vamos às conclusões do estudo, cujo título é "Speed and Crash Risk" ("Velocidade e Risco de Acidentes Viários"):

  • Foram analisados acidentes em dez países: Austrália, Áustria, Dinamarca, França, Hungria, Israel, Itália, Noruega, Suécia e Estados Unidos;
  • Conduzir em velocidades inadequadas para a via responde por 30% a 40% dos acidentes de trânsito fatais;
  • Um aumento de 1% na velocidade média resulta em um aumento aproximado de 2% em acidentes com pessoas feridas, em 3% na frequência de acidentes com ferimentos graves e em 4% na incidência de acidentes com mortes;
  • Os dados da Noruega mostram que se todos os motoristas dirigissem a uma velocidade inferior ao limite permitido nas vias, o número de mortes no trânsito sofreria uma redução de 20%;
  • Entre 2003 e 2009, a França instalou 1.661 radares fixos e 932 radares móveis em todo o país. Como consequência, a velocidade média nas rodovias caiu e o número de mortes em acidentes trânsito reduziu-se em até 35% em áreas rurais, 38% em rodovias urbanas e 14% nas ruas das cidades.

Nem precisaria ir tão longe. A redução dos limites de velocidade em avenidas com altos índices de colisão de veículos em Brasília conseguiu reduzir em até 70% o número de acidentes no curto período de dois anos. Sem fiscalização eletrônica, esses resultados não seriam alcançados.

Em média, 37.000 brasileiros morrem todos os anos em acidentes viários. Como já escrevi aqui, a proporção de óbitos em acidentes viários no país é de 18,4 por 100.000 habitantes, o que nos coloca no patamar de países como a Malásia. E estamos pior do que o Chile e a Argentina. A Lei de número 13.614, de janeiro de 2018, que criou o Plano Nacional de Redução de Mortes e Lesões no Trânsito (Pnatrans), definiu como meta reduzir pela metade, no mínimo, o número de óbitos nas vias brasileiras até 2028. A guerra de Bolsonaro contra os radares vai na contramão desse esforço.

Melhor ter uma indústria da multa do que uma indústria de mortos no trânsito.

 

Sobre o Autor

Diogo Schelp é jornalista com 20 anos de experiência. Foi editor executivo da revista VEJA e redator-chefe da ISTOÉ. Durante 14 anos, dedicou-se principalmente à cobertura e à análise de temas internacionais e de diplomacia. Fez reportagens em quase duas dezenas de países. Entre os assuntos investigados nessas viagens destacam-se o endurecimento do regime de Vladimir Putin, na Rússia, o narcotráfico no México, a violência e a crise econômica na Venezuela, o genocídio em Darfur, no Sudão, o radicalismo islâmico na Tunísia e o conflito árabe-israelense. É coautor dos livros “Correspondente de Guerra” (Editora Contexto, com André Liohn) e “No Teto do Mundo” (Editora Leya, com Rodrigo Raineri).

Sobre o Blog

“O que mantém a humanidade viva?”, perguntava-se o dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Essa é a pergunta que motiva esse blog a desembaraçar o noticiário internacional – e o nacional, também, quando for pertinente – e a lançar luz sobre fatos e conexões que não receberam a atenção devida. Esse é um blog que quer surpreender, escrito por alguém que gosta de ser surpreendido.