Topo

Diogo Schelp

Em derrota para Johnson, parlamento britânico vai votar adiamento do Brexit

Diogo Schelp

03/09/2019 18h26

Boris Johnson

Boris Johnson (Hannah McKay/Reuters)

"Não temos um presidencialismo, sr. primeiro-ministro!", lembrou o trabalhista Jeremy Corbyn, líder da oposição britânica, ao premiê conservador Boris Johnson nesta terça-feira (3), logo após o parlamento aprovar uma moção que permitirá aos deputados votar uma lei, nesta quarta-feira (4), capaz de evitar uma saída não negociada da União Europeia no dia 31 de outubro.

Os parlamentares votaram para tomar o controle da pauta de votação, normalmente nas mãos do gabinete de governo. Com isso, eles podem colocar em discussão a lei que na prática poderá exigir que Johnson peça a Bruxelas o adiamento do prazo para a saída do país da UE.

Foi uma derrota humilhante para Johnson: 328 deputados votaram a favor e 301 contra a moção. Nada menos que 21 conservadores votaram contra o premiê do seu partido. O vigésimo segundo já havia debandado para a oposição no início da tarde desta terça-feira: o deputado Philip Lee desertou para o Partido Liberal-Democrata. A troca ocorreu em meio a um discurso de Johnson no parlamento — Lee literalmente mudou de lado, saindo das cadeiras reservadas para os conservadores para se sentar ao lado dos lib-dems. Com isso, o Partido Conservador perdeu a maioria de cadeiras no parlamento.

ESTILO PRESIDENCIAL

De fato, como disse Corbyn em sua crítica ao estilo presidencial de Boris Johnson, no Reino Unido vigora o parlamentarismo, não o presidencialismo. Mais do que isso, o modelo britânico de democracia, também chamado de modelo Westminster ou modelo majoritário, é único no mundo em seu centralismo, seu gabinete ministerial todo-poderoso, seu bipartidarismo, seu sistema eleitoral desproporcional e sua flexibilidade constitucional, entre outras características. Pois esse modelo está em crise — e parece se desmanchar aos poucos à medida em que o país tropeça em direção ao Brexit.

O primeiro-ministro Boris Johnson, que assumiu em julho, tentou na semana passada passar a perna no parlamento para empurrar o país para uma saída não negociada da União Europeia. O prazo para um acordo é dia 31 de outubro e, como a maioria dos deputados é contra a saída "dura", Johnson quer empurrar o tema com a barriga até lá. Para isso, pediu a suspensão do parlamento entre os dias 10 de setembro e 14 de outubro.

O que muita gente chamou de "golpe parlamentar" na realidade é uma prática recorrente nessa época do ano, ainda que a duração da suspensão pedida por Johnson seja especialmente longa. Sobra pouco tempo para os deputados tentarem algo para forçar o governo a negociar uma saída "suave" com a União Europeia, com o intuito de reduzir o impacto econômico do divórcio para o Reino Unido.

A oposição parlamentar, apoiada por alguns membros rebeldes do partido do governo, prepara-se para aprovar, nesta quarta-feira (4), a lei que, na prática, obrigará o premiê a pedir à UE o adiamento do divórcio.

Johnson ameaça convocar novas eleições no dia 15 de outubro, se a lei for aprovada.

MODELO EM CRISE

Esse intrincado jogo de força entre o parlamento e Boris Johnson reflete apenas um dos elementos em transformação no modelo britânico de democracia. Como mostra Arend Lijphart no livro Modelos de Democracia, uma das características do Reino Unido é a existência de um Poder Executivo dominante em relação ao Poder Legislativo. Quando não há apoio coeso ao gabinete no Parlamento, o governo tende a se enfraquecer.

Isso vem ocorrendo desde o início das negociações do Brexit, ainda na gestão da premiê Theresa May, que acabou caindo porque não conseguiu ter a sua versão do divórcio com a UE aprovada pelo parlamento.

A queda de braço entre parlamentares e gabinete alimenta um fenômeno que vem sendo identificado desde o referendo do Brexit, em 2016: a perda de confiança dos eleitores no parlamento e o anseio pelo surgimento de um líder forte no governo. Uma pesquisa recente mostra que 42% dos britânicos gostariam que o governo não precisasse se preocupar tanto com as votações no parlamento.

Uma possível explicação para esse sentimento é a de que o sistema com dois partidos fortes (Trabalhista e Conservador) vem perdendo o seu caráter "unidimensional", o que, na definição de Lijphart, significa que eles diferem entre si quase que exclusivamente em questões socioeconômicas.

Nos últimos tempos, novas clivagens surgiram entre os (e dentro dos) principais partidos britânicos, entre as quais questões identitárias, com foco para o tema da imigração, e a visão de futuro para o país no contexto internacional, o inclui o debate em torno da perda de soberania para a UE. As duas questões, não por acaso, estão ligadas ao Brexit.

CONTRADIÇÕES

A própria permanência do Reino Unido na União Europeia coloca em xeque alguns dos elementos definidores do modelo britânico de democracia, entre os quais o de que a última palavra em termos legislativos é do parlamento, não cabendo revisão judicial (como é o papel, no Brasil, do Supremo Tribunal Federal). Os países membros da UE devem submeter suas leis à revisão da Corte Europeia de Justiça.

Por esse ponto de vista, portanto, o voto pela saída da UE foi um movimento contrário à diluição de um dos elementos definidores do modelo de democracia britânico.

Por outro lado, a vitória apertada da opção pela saída do bloco mostrou os limites de um sistema que, radicalizando, dá tudo à maioria e nada à minoria. Ou seja, a metade mais um pouco que votou pela saída no referendo de 2016 (51,9%) tirou da outra metade menos um pouco que votou por permanecer (48,1%) o direito de almejar por um futuro comum com outros europeus.

E isso com um agravante de caráter geracional: os eleitores pró-Brexit eram em média mais velhos do que os anti-Brexit. Em outras palavras, as gerações mais velhas votaram contra o futuro desejado pelas gerações mais novas.

Diversos observadores políticos do Reino Unido afirmam, atualmente, que o referendo jamais deveria ter sido realizado. Mas tratava-se de uma promessa de campanha do primeiro-ministro conservador David Cameron e, como também é característico do modelo Westminster de democracia, não havia muita coisa que os opositores a essa ideia pudessem fazer, em termos de saídas negociadas, para impedi-la.

O Brexit, portanto, é ao mesmo tempo uma causa e um sintoma da crise do modelo de democracia britânico.

Sobre o Autor

Diogo Schelp é jornalista com 20 anos de experiência. Foi editor executivo da revista VEJA e redator-chefe da ISTOÉ. Durante 14 anos, dedicou-se principalmente à cobertura e à análise de temas internacionais e de diplomacia. Fez reportagens em quase duas dezenas de países. Entre os assuntos investigados nessas viagens destacam-se o endurecimento do regime de Vladimir Putin, na Rússia, o narcotráfico no México, a violência e a crise econômica na Venezuela, o genocídio em Darfur, no Sudão, o radicalismo islâmico na Tunísia e o conflito árabe-israelense. É coautor dos livros “Correspondente de Guerra” (Editora Contexto, com André Liohn) e “No Teto do Mundo” (Editora Leya, com Rodrigo Raineri).

Sobre o Blog

“O que mantém a humanidade viva?”, perguntava-se o dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Essa é a pergunta que motiva esse blog a desembaraçar o noticiário internacional – e o nacional, também, quando for pertinente – e a lançar luz sobre fatos e conexões que não receberam a atenção devida. Esse é um blog que quer surpreender, escrito por alguém que gosta de ser surpreendido.