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Diogo Schelp

O que ameaça família é violência doméstica e alienação parental

Diogo Schelp

08/09/2019 14h17

Cena da HQ "Vingadores – A Cruzada das Crianças" (Reprodução/Divulgação)

O prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, se diz preocupado em defender a família brasileira. Para isso, tentou censurar um livro de história em quadrinhos da série Vingadores na Bienal do Livro, que se encerra neste domingo (8) no Rio. Os organizadores do evento obtiveram uma liminar para impedir a apreensão da obra, considerada "pornográfica" pelo prefeito. Também neste domingo (8), o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou uma decisão do presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Claudio de Mello Tavares, que suspendeu a liminar que impedia a censura às obras com temática LGBT.

Tavares também foi movido pela intenção de proteger a família, apelando para um artigo do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em que se diz que publicações voltadas para o público infanto-juvenil devem "respeitar os valores éticos e sociais da pessoa e da família".

O absurdo jurídico da medida adotada por Crivella e, mais ainda, dos argumentos do desembargador Tavares já foi abordado nas decisões dos ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes. Ainda cabe, no entanto, entender a questão dos "valores" que envolve o assunto.

AMEAÇA À FAMÍLIA

A primeira entrada para "pornografia" do Dicionário Aurélio a define como: "Qualquer coisa (arte, literatura etc.) que vise explorar o sexo de maneira vulgar e obscena."

Não é sequer preciso entrar no debate subjetivo sobre vulgaridade e obscenidade. A imagem de dois homens se beijando na boca não é uma cena de sexo, tanto quanto a imagem de um homem e de uma mulher se beijando na boca pode ser considerada uma cena de sexo.

Se não há conotação sexual (se houvesse, beijos na boca não poderiam ser mostrados em filmes da Sessão da Tarde), podemos descartar o argumento da pornografia. Onde, então, está a ameaça à família?

É mais do que evidente que o que Crivella e Tavares veem como ameaça à família é a homossexualidade em si. Trata-se, porém, de uma inversão da questão. O que realmente ameaça a família é a não aceitação da homossexualidade no âmbito familiar. Para deixar claro: isso não tem nada a ver com promoção da homossexualidade, tem a ver com aceitá-la quando ela existe.

Quantas crianças ou jovens não sofrem com a repressão ou mesmo a violência por parte dos pais quando a sua orientação sexual e a sua verdadeira identidade de gênero afloram? Quantos laços familiares não são desfeitos, muitas vezes para sempre, porque alguns de seus integrantes veem como ameaça algo que deveriam abraçar com naturalidade ou, no mínimo, com tolerância?

O que ameaça a família é tudo aquilo que a desagrega, que lança seus indivíduos para lados opostos. Crivella e os representantes do Judiciário deveriam se concentrar em políticas públicas e em interpretar as leis visando a atacar as verdadeiras ameaças à família.

São muitas, e bastante óbvias, as ameaças à família brasileira. Vou me restringir a citar apenas três, sempre com dados estatísticos que comprovam, objetivamente, o meu argumento. A ordem em que elas aparecem não refletem, necessariamente, uma hierarquia de importância.

A primeira é a proliferação das drogas ilícitas. Não se trata apenas de se preocupar com o acesso dos filhos às drogas. Um problema igualmente devastador é o uso de drogas pelos pais. Atenção para esse dado: oito em cada dez crianças em abrigos do Estado no Rio de Janeiro são filhos de pais que perderam sua guarda pelo uso recorrente de drogas. Oito em cada dez!

Querem defender a família, criem políticas capazes de minimizar esse fenômeno.

VIOLÊNCIA E ABUSO

A segunda é a violência doméstica. Em 70% dos casos de agressões físicas atendidos na rede de saúde do estado do Rio de Janeiro, as mulheres são as vítimas. E, nos últimos cinco anos, o agressor era um conhecido ou parente das vítimas em 64,2% dos casos de crimes de lesão corporal, que em 52,7% das situações ocorreram na residência da mulher agredida.

Nesse contexto, insere-se também a violência contra as crianças. Em todo o Brasil, o abuso sexual é o tipo de violência contra a criança mais atendida na rede de saúde, respondendo por 58% dos casos. Os agressores são, na maioria das vezes, familiares ou pessoas que frequentam a casa da família.

Querem defender a família, aumentem a rede de apoio às vítimas de estupro e violência doméstica.

PAIS EXCLUÍDOS

A terceira é a alienação parental. O termo refere-se ao ato de dificultar o acesso de um dos genitores aos filhos. Na maioria das vezes, são os homens que se queixam da alienação parental, pois, apesar de a lei garantir direitos iguais aos pais na divisão da guarda dos filhos, os juízes brasileiros ainda resistem em aplicar a lei da maneira devida. Estima-se que 35% dos divórcios no Brasil são litigiosos.

A lei estabelece, desde 2014, que, quando não há acordo entre os pais, o juiz deve estabelecer a guarda compartilhada. Não é o que tem ocorrido na prática. Segundo levantamento de 2017, apenas um em cada cinco divórcios no Brasil resulta em guarda compartilhada.

Muitas vezes, um pai é excluído do convívio com os filhos (e, portanto, os filhos são excluídos do convívio com o pai) por puro preconceito ou conservadorismo das autoridades judiciais, que acatam, preventivamente, os testemunhos falsos da mãe.

Querem defender a família, criem meios para aumentar a eficiência das investigações para discernir acusações falsas de verdadeiras no âmbito de processos de divórcio e apliquem com maior empenho a lei de guarda compartilhada.

As três situações acima, uso de drogas, violência doméstica e alienação parental, são ameaças inequívocas aos "valores éticos e sociais da família". Mas não se vê o prefeito Crivella e outras autoridades brasileiras tão preocupados com elas.

Qual é o dado estatístico capaz de mostrar o suposto dano que obras literárias com temáticas LGBT podem causar à família? Tal dado não existe, claro.

 

 

Sobre o Autor

Diogo Schelp é jornalista com 20 anos de experiência. Foi editor executivo da revista VEJA e redator-chefe da ISTOÉ. Durante 14 anos, dedicou-se principalmente à cobertura e à análise de temas internacionais e de diplomacia. Fez reportagens em quase duas dezenas de países. Entre os assuntos investigados nessas viagens destacam-se o endurecimento do regime de Vladimir Putin, na Rússia, o narcotráfico no México, a violência e a crise econômica na Venezuela, o genocídio em Darfur, no Sudão, o radicalismo islâmico na Tunísia e o conflito árabe-israelense. É coautor dos livros “Correspondente de Guerra” (Editora Contexto, com André Liohn) e “No Teto do Mundo” (Editora Leya, com Rodrigo Raineri).

Sobre o Blog

“O que mantém a humanidade viva?”, perguntava-se o dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Essa é a pergunta que motiva esse blog a desembaraçar o noticiário internacional – e o nacional, também, quando for pertinente – e a lançar luz sobre fatos e conexões que não receberam a atenção devida. Esse é um blog que quer surpreender, escrito por alguém que gosta de ser surpreendido.