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Diogo Schelp

A reação à Lava Jato causa turbulência política? Olhe para o Peru

Diogo Schelp

02/10/2019 13h09

Martín Vizcarra

Martín Vizcarra, presidente do Peru (Foto: Mariana Bazo/Reuters)

Para compreender o pano de fundo do atual impasse na política peruana — em que o presidente Martín Vizcarra é acusado de golpe por dissolver o congresso, apesar de ter recorrido a uma manobra com verniz de legalidade constitucional — é preciso olhar para os desdobramentos da Operação Lava Jato no Peru. O exemplo peruano mostra que o combate à corrupção cobra um preço político e pode provocar instabilidade em sistemas democráticos jovens. Isso ocorre porque, cedo ou tarde, os grupos mais impactados pelas investigações juntam forças para contra-atacar.

Isso está acontecendo no Brasil e também no Peru.

Vizcarra chegou ao poder em março de 2018, quando o então presidente Pedro Pablo Kuczynski renunciou em meio a acusações de que se beneficiou em negócios envolvendo a empreiteira brasileira Odebrecht durante o período em que foi ministro das Finanças, em um governo anterior. Vizcarra era seu vice-presidente. 

Kuczynski tinha uma relação complicada com o congresso, dominado pelo grupo político de Keiko Fujimori, filho do ex-presidente Alberto Fujimori (que está preso, condenado por diversos crimes cometidos durante seus anos no poder, entre 1990 e 2000). Quando Kuczynski venceu as eleições, Keiko prometeu comandar um governo paralelo a partir do congresso. 

Cadeias presidenciais

Kuczynski está em prisão domiciliar, enquanto as acusações de corrupção são investigadas. 

Ele não é o único ex-presidente peruano preso ou com prisão decretada por causa de desdobramentos da Lava Jato. Ollanta Humala, presidente entre 2011 e 2016, foi preso em 2017 e aguarda julgamento. Alejandro Toledo (2001-2006) teve sua prisão decreta, mas refugiou-se nos Estados Unidos. Foi detido em julho deste ano e aguarda extradição. Alan García (1985-1990 e 2006-2011) cometeu suicídio em abril deste ano, antes de ser levado pela polícia.

Keiko, vejam só, também é acusada de envolvimento com a Odebrecht. Ela teria recebido financiamentos ilegais de campanha da empreiteira brasileira. A ex-candidata presidencial está em prisão preventiva desde outubro de 2018.

Discurso anticorrupção

Vizcarra assumiu a presidência com um discurso de combate à corrupção. Já deu para perceber, pelo histórico acima, que os tentáculos de corrupção da empreiteira brasileira abraçavam quase todo o espectro político peruano. E é evidente que Vizcarra enfrentou resistência em seus desígnios.

Seu desgaste com o congresso começou com a realização de um referendo para aprovar uma reforma anticorrupção. Desde então, o presidente e os parlamentares se enfrentaram em torno de outras medidas que ampliam os mecanismos de fiscalização. Por fim, diante do impasse com os legisladores, Vizcarra tentou antecipar as eleições presidenciais e parlamentares para o ano que vem. Não conseguiu. Em seguida, dissolveu o congresso por uma disputa em torno das regras para a nomeação dos juízes da suprema corte peruana.

Para isso, Vizcarra fez uma interpretação bastante controversa de um mecanismo que permite aos presidentes dissolver o congresso quando se veem derrotados em duas moções de confiança.

A ilegalidade da medida é assunto para outra discussão. O que interessa aqui é reconhecer que investigações tão amplas para desmantelar a corrupção endêmica nos países latino-americanos, como as que foram disparadas pela Lava Jato, invariavelmente sofrerão contra-ataques de pessoas e grupos poderosos que se vêm prejudicados por elas, provocando instabilidade política.

Isso não significa que o risco de instabilidade deve coibir o combate à corrupção, mas que os métodos precisam ser aprimorados para reduzir a margem para contestações. Keiko Fujimori, por exemplo, está presa preventivamente há um ano sem uma acusação formal.

Outra lição do caso peruano é que o anseio popular por uma "limpeza ética" na política costuma levar ao surgimento de lideranças que usam o discurso anticorrupção para justificar atitudes autoritárias — o que, no fim das contas, coloca em questão a própria credibilidade da agenda anticorrupção.

Sobre o Autor

Diogo Schelp é jornalista com 20 anos de experiência. Foi editor executivo da revista VEJA e redator-chefe da ISTOÉ. Durante 14 anos, dedicou-se principalmente à cobertura e à análise de temas internacionais e de diplomacia. Fez reportagens em quase duas dezenas de países. Entre os assuntos investigados nessas viagens destacam-se o endurecimento do regime de Vladimir Putin, na Rússia, o narcotráfico no México, a violência e a crise econômica na Venezuela, o genocídio em Darfur, no Sudão, o radicalismo islâmico na Tunísia e o conflito árabe-israelense. É coautor dos livros “Correspondente de Guerra” (Editora Contexto, com André Liohn) e “No Teto do Mundo” (Editora Leya, com Rodrigo Raineri).

Sobre o Blog

“O que mantém a humanidade viva?”, perguntava-se o dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Essa é a pergunta que motiva esse blog a desembaraçar o noticiário internacional – e o nacional, também, quando for pertinente – e a lançar luz sobre fatos e conexões que não receberam a atenção devida. Esse é um blog que quer surpreender, escrito por alguém que gosta de ser surpreendido.