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Diogo Schelp

'Quadro de impunidade se agrava', diz diretor de ONG anticorrupção

Diogo Schelp

09/11/2019 07h48

Lula Livre

Ex-presidente Lula em Curitiba, após ser solto (Foto: GIULIANO GOMES/ESTADÃO CONTEÚDO)

A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de proibir prisão após condenação em segunda instância, no contexto de um sistema judiciário que permite recursos infindáveis, e a consequente libertação de Lula e de outros condenados da Lava Jato agrava o quadro de impunidade das elites corruptas e abala a credibilidade das instituições brasileiras. Essa é a avaliação de Bruno Brandão, diretor-executivo da Transparência Internacional (TI) Brasil, a franquia brasileira da organização não governamental (ONG) com sede na Alemanha que atua na causa anticorrupção em mais de 100 países.

Brandão e a ONG foram atacadas pelo ministro do STF Gilmar Mendes durante a leitura de seu voto contrário à prisão após segunda instância, nesta quinta-feira (7). Gilmar Mendes se irritou com um relatório, divulgado recentemente pela TI, que denuncia retrocessos institucionais no combate à corrupção no Brasil.

Brandão concedeu a seguinte entrevista na noite desta sexta-feira (8), poucas horas após o ex-presidente Lula, que foi condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro na Lava Jato, ter sido solto em Curitiba, beneficiado pelo novo entendimento do STF de que a execução da pena só pode ocorrer depois do trânsito em julgado (ou seja, depois de esgotados todos os recursos possíveis).

Qual é o impacto da decisão do STF para a causa anticorrupção?

Existe um impacto de agravamento do quadro de impunidade, principalmente de uma certa clientela do sistema judiciário, as classes altas, que só recentemente começou a ser atingida pelo código penal. O episódio também abala a credibilidade das instituições, principalmente por causa desse vai e vem das decisões do STF, com ministros que mudam de opinião e votam de acordo com as circunstâncias. Isso tudo ocorre em um contexto de ceticismo geral e desconfiança da população nas instituições democráticas. Também pode haver um agravamento da radicalização política. O prejuízo, portanto, vai muito além da causa anticorrupção, afetando a confiança no próprio regime democrático.

O que a decisão revela sobre o sistema judiciário brasileiro?

É preciso deixar claro que enxergamos razoabilidade em ambas as leituras da questão constitucional. O que causa estranheza são as mudanças de interpretação de acordo com as circunstâncias. Isso agrava o quadro de disfuncionalidade do nosso sistema recursal e do sistema de prescrição penal, que favorece a impunidade de determinados réus. Trata-se de um problema muito mais amplo do que a Lava Jato ou o que vai acontecer com Lula. O fato é que a Justiça tarda em executar sentenças, tanto na esfera penal quanto cível, e isso beneficia uma elite capaz de investir em assistência jurídica e que usa o sistema em seu favor, postergando decisões indefinidamente, enquanto a massa geral da população brasileira carece de acesso básico ao direito de justiça.

Isso quer dizer que só os ricos vão se beneficiar com a recente decisão do STF?

O acesso aos tribunais superiores é um funil. A grande maioria dos réus desvalidos no país não tem esse acesso, embora é preciso reconhecer o trabalho louvável das defensorias públicas, que muitas vezes se empenham em levar até o último grau a luta por Justiça para quem está na base do sistema. Mas as estatísticas mostram que uma minoria chega lá. A grande maioria dos réus que conseguem decisões favoráveis é a elite política e econômica brasileira. Isso transmite uma percepção de seletividade do  Poder Judiciário. O sistema é disfuncional nas duas pontas, pois é extremamente punitivista, cruel e negligente com as garantias básicas dos réus no andar de baixo, enquanto no andar de cima é leniente com a impunidade das elites.

Esse entendimento do STF é uma jaboticaba, ou seja, algo que só existe no Brasil? 

Trata-se de uma anomalia. Essa discussão ocorre em países onde predominam esses pactos oligárquicos pela impunidade. Na Argentina, por exemplo, também há uma discussão recorrente sobre execução de sentenças apenas após trânsito em julgado, que lá se chama sentencia firme. Mas nos países com instituições democráticas mais avançadas, normalmente ou se executa a sentença já em decisões de primeira instância ou segunda instância, como é o caso dos Estados Unidos, onde toda a apelação ocorre com a sentença já em execução, ou, como ocorre na Alemanha, que exige o trânsito em julgado, mas o sistema não permite a infinidade de recursos que existe no Brasil. São raríssimos os casos que podem chegar ao tribunal constitucional alemão. Ou seja, trata-se de um sistema mais racional nos seus recursos. O que não pode existir é um sistema permeável os recursos nos tribunais superiores ao mesmo tempo em que se exige o trânsito em julgado. Esse é o caso do Brasil, e é o pior dos mundos.

Em seu discurso após ser solto, Lula disse ter sido vítima de um "lado podre" da Justiça, da Polícia Federal, da Receita Federal e do Ministério Público. Qual é o risco desse tipo de retórica?

A gente vê discursos como esse nos mais de 100 países onde atuamos com o tema do combate à corrupção. A retórica de perseguição e de deslegitimação dos agentes da lei não é novidade alguma. Isso está na página 1 do manual do réu de corrupção. O lamentável é que isso ocorre no momento em que existem movimentos de autoritarismo crescente e de excessos nas instituições. O discurso deslegitimador do Poder Judiciário, seja de um lado ou de outro, só debilita as instituições e abre espaço para soluções autoritárias. Isso não beneficia nossa democracia. Os partidos no Brasil não souberam confrontar o problema da corrupção. Mesmo com todos esses réus já condenados, pouquíssimos são os casos em que eles enfrentaram os conselhos de ética de seus partidos ou sofreram afastamento. Ao contrário, o que vemos é o uso dessas acusações como bandeira política.

A libertação de Lula deve levar a uma intensificação da polarização política. Qual o impacto disso no combate à corrupção?

A polarização vai se intensificar e, com isso, o combate à corrupção perde espaço. Do lado da esquerda, o tema é cada vez mais um grande tabu. Esse setor social, que historicamente levantou a causa anticorrupção, com protagonismo, se afastou completamente e se tornou incrivelmente tolerante à corrupção e à impunidade. No outro extremo, surgiu um campo político mais à direita que capturou o discurso anticorrupção e associa essa causa a um discurso de ódio, de intolerância, de violação de direitos e de autoritarismo. O desafio que se coloca é encontrar um campo de legitimidade para tratar da luta contra a corrupção de maneira séria, para encontrar soluções reais para suas causas estruturais. Infelizmente, pelo que tudo indica, estamos sendo tragados cada vez mais para a radicalização das paixões políticas.

 

Sobre o Autor

Diogo Schelp é jornalista com 20 anos de experiência. Foi editor executivo da revista VEJA e redator-chefe da ISTOÉ. Durante 14 anos, dedicou-se principalmente à cobertura e à análise de temas internacionais e de diplomacia. Fez reportagens em quase duas dezenas de países. Entre os assuntos investigados nessas viagens destacam-se o endurecimento do regime de Vladimir Putin, na Rússia, o narcotráfico no México, a violência e a crise econômica na Venezuela, o genocídio em Darfur, no Sudão, o radicalismo islâmico na Tunísia e o conflito árabe-israelense. É coautor dos livros “Correspondente de Guerra” (Editora Contexto, com André Liohn) e “No Teto do Mundo” (Editora Leya, com Rodrigo Raineri).

Sobre o Blog

“O que mantém a humanidade viva?”, perguntava-se o dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Essa é a pergunta que motiva esse blog a desembaraçar o noticiário internacional – e o nacional, também, quando for pertinente – e a lançar luz sobre fatos e conexões que não receberam a atenção devida. Esse é um blog que quer surpreender, escrito por alguém que gosta de ser surpreendido.