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Diogo Schelp

Evo Morales está perdendo controle de seu partido, diz socióloga da Bolívia

Diogo Schelp

27/11/2019 04h00

Bolívia

A presidente interina da Bolívia, Jeanine Añez (à esq.), com Eva Copa (à dir.), a nova presidente do Senado boliviano, no domingo (24), após aprovação de lei para a convocação de novas eleições. Eva Copa é uma das novas expoentes do MAS, partido do ex-presidente Evo Morales (Foto: David Mercado/Reuters)

Duas semanas depois de renunciar à presidência da Bolívia em meio a protestos contra sua tentativa de fraudar as eleições no país, Evo Morales seguia incentivando, do exílio no México, a reação de seu núcleo duro de apoiadores contra o governo interino de Jeanine Añez. Mas os fatos mais recentes indicam que ele está perdendo o controle de seu partido, o Movimento ao Socialismo (MAS).

Essa é a avaliação da socióloga Fernanda Wanderley, diretora do Instituto de Investigações Sócio-Econômicas (IISEC) da Universidade Católica Boliviana, em La Paz. Nascida no Brasil, ela vive na Bolívia desde os 27 anos de idade e tem dupla cidadania. Ph.D em sociologia pela Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, Fernanda Wanderley é coautora do livro "Hacia el Desarrollo Sostenible en la Región Andina", sem tradução em português, lançado em dezembro de 2018.

Esta entrevista é o terceiro texto de uma série que este blog está publicando sobre o atual fenômeno regional de manifestações de rua na América do Sul. O primeiro, sobre o Chile, pode ser lido aqui, e o segundo, sobre a Colômbia, aqui

Segue a conversa com a professora Fernanda Wanderley:

Os recentes protestos na Bolívia ocorreram em duas fases. Na primeira, uma onda de manifestações levou à renúncia do presidente Evo Morales. Na segunda, seus apoiadores foram às ruas para exigir seu retorno e a queda do governo interino, assumido pela senadora Jeanine Añez. Até que ponto esses protestos foram espontâneos ou coordenados por grupos com interesses políticos específicos?

Os protestos que se iniciaram logo depois das eleições presidenciais de 20 de outubro ocorreram de maneira espontânea em várias cidades do país. Foi uma explosão de indignação em todo o território nacional. Houve, se dúvida alguma, várias organizações que assumiram um papel mais ativo, mais público, nesses movimentos, mas isso variou muito de região a região. No caso de La Paz, havia grupos e personalidades políticas tentando canalizar essa explosão, mas era nos bairros que a mobilização de fato ocorria, sem qualquer liderança. Os vizinhos se organizavam e criavam barricadas. Foi um movimento realmente muito espontâneo, o que não é uma surpresa na Bolívia.

Temos aqui uma sociedade orgânica, com uma ação coletiva forte ao longo da sua história, e os bairros são tradicionalmente esse espaço de organização. Esse tipo de manifestação pública já aconteceu diversas vezes.

Em outros departamentos, outras vozes mais públicas se levantaram. No Oriente do país, por exemplo, os comitês cívicos são organizações mais importantes, com voz mais clara.

Alguma classe social predominava ou o perfil dos manifestantes era heterogêneo?

O perfil dos manifestantes dependia do bairro onde ocorriam as mobilizações. Nos bairros de classe média da zona sul de La Paz, víamos manifestantes mais abastados e menos indígenas. Nos bairros com uma população de maioria de migrantes, havia mais indígenas participando dos protestos. Como as manifestações ocorreram em diversos bairros, foi um movimento muito heterogêneo.

Grupos de diferentes classes sociais demonstraram seu descontentamento e sua indignação com as irregularidades nas eleições. Várias organizações indígenas importantes manifestaram seu apoio às manifestações, assim como diversas classes de trabalhadores, comerciantes e integrantes de cooperativas.

Várias organizações indígenas importantes manifestaram seu apoio às manifestações contra Evo"

Foi um movimento concentrado na indignação com o atropelo do governo Evo Morales em relação ao voto popular. Essa explosão popular ocorreu depois de um acúmulo de insatisfação que começou em fevereiro de 2016, quando Evo Morales descumpriu o resultado de um referendo constitucional para dar-lhe o direito de buscar um quarto mandato.

Para muitos bolivianos, portanto, Morales já não era um candidato legítimo nas eleições deste ano. Ele não podia ser candidato nessas eleições.

Morales manteve algum apoio em algumas áreas e em alguns setores?

Sim, mas mesmo nesses lugares o apoio já estava dividido. Um exemplo é a cidade de El Alto, na região de La Paz. (No dia seguinte à renúncia de Evo Morales, uma multidão desceu de El Alto em direção a La Paz aos gritos de "guerra civil".) A cidade é composta principalmente por migrantes do campo, de maioria da etnia indígena aymará. Na Bolívia, mais de 40% da população é indígena, que além disso é diversa, espalhada e com grande presença urbana.

O MAS é forte em El Alto, mas a prefeita da cidade não é do partido. Por isso, nos últimos dias, ela foi atacada e a casa dela foi queimada. El Alto está dividida. De um lado, os apoiadores do MAS querendo manter os bloqueios nas ruas com ações bastante violentas e, de outro lado, vizinhos brigando na rua contra os bloqueadores. Metade da população de El Alto, talvez até mais, não apoia esses bloqueios a favor de Evo Morales. Dentro do próprio MAS estão surgindo divisões e novas forças.

Qual é a diferença dessas forças dentro do MAS para o núcleo duro de apoio a Evo Morales?

O governo do MAS era muito centralizador na personalidade de Evo Morales. O partido não permitia o surgimento de novas lideranças, mesmo intermediárias. A relação de Morales com o Poder Legislativo era muito vertical, ou seja, não permitia um grau mínimo sequer de discussão no parlamento, dominado pelo MAS.

Se Evo tivesse aceitado o resultado do referendo, poderia ter indicado um sucessor de seu partido para concorrer à presidência"

Essa forma centralizadora de atuar não dava possibilidade para a emergência de outro candidato para o MAS que não fosse Morales. Se ele tivesse aceitado o resultado do referendo, poderia ter indicado um sucessor de seu partido para concorrer à presidência. Por que não? Por que tinha que ser só o Morales ou o Álvaro Garcia Linera (o vice-presidente, que também partiu para o exílio)? A grande surpresa das últimas semanas é que existem novos líderes no MAS, novas cabeças que são a favor de seguir um caminho mais democrático.

Qual é principal nome do MAS que está despontando com a ausência de Evo Morales?

Eva Copa é este nome. Como nova presidente do Senado, ela se tornou a líder do parlamento e é quem está sendo a voz desse novo MAS ao fechar um acordo (no domingo, 24) com o governo para a convocação de eleições presidenciais sem a participação de Evo Morales e Álvaro Garcia Linera.

A lei que dá viabilidade às novas eleições, aliás, foi aprovada por unanimidade no parlamento, onde o MAS segue tendo maioria. Na verdade, o que foi feito é recuperar o respeito ao referendo que decidiu não mudar a Constituição. Não há nada de arbitrário nisso.

O fato de a maioria do MAS no parlamento ter votado a favor dos termos para a convocação de uma nova eleição demonstra que Evo Morales perdeu o controle do seu partido?

Acredito que sim. Essa é a minha interpretação, pois Evo Morales estava insistindo muito para voltar. Há muitos indícios de que ele estava promovendo, através de seus articuladores, essa revolta violenta que o país enfrentou nos dias seguintes à sua partida para o exílio. Foram situações de muita violência, principalmente nos bairros mais periféricos. As famílias de moradores não podiam sair de suas casas ou eram obrigadas a participar dos bloqueios. Elas sofriam ameaças, com gente batendo em suas portas e avisando que suas residências iam ser incendiadas. De fato, muitas foram.

Há muitos indícios de que Evo Morales estava promovendo, através de seus articuladores, essa revolta violenta que o país enfrentou nos dias seguintes à sua partida para o exílio"

Grupos de delinquentes aproveitaram essa situação para roubar as casas. Houve naquele momento um vazio de poder. A resistência à saída de Evo Morales foi organizada por grupos de choque do MAS. Em Cochabamba, esse papel foi desempenhado pelos cocaleros (produtores de coca) do MAS — porque é preciso deixar claro que nem todos os cocaleros são do MAS. Esse foi o contra-ataque dos apoiadores de Evo.

Agora, com a adesão do parlamentares do MAS à convocação de novas eleições, é que vamos começar a conhecer melhor quem vai emergir desse partido.

Os protestos promovidos pelo núcleo duro pró-Morales diminuíram?

Diminuíram com a aprovação da lei para a convocação de novas eleições. A bancada do MAS ainda tentou negociar uma anistia de 14 anos para Evo Morales e para toda a cúpula do partido, mas isso foi recusado pelo governo. Se houve algum abuso nos eventos das últimas semanas, seja da parte de quem for, terá que ser verificado.

A economia boliviana foi bem nos últimos anos e uma grande parcela da população se beneficiou com os avanços sociais. Como se explica que, apesar disso, a população se voltou contra o governo? É um sinal de apego cada vez maior aos valores da democracia?

A economia foi muito bem durante o período de 2005 a 2015, com um crescimento do PIB espetacular. Isso ocorreu principalmente por causa do aumento dos preços internacionais das matérias primas, principalmente minérios e combustíveis fósseis (petróleo e gás). Esse fenômeno beneficiou toda a América Latina e a Bolívia não foi uma exceção. O país tem uma economia tremendamente dependente da exportação de matérias-primas, e nesse período essa dependência só aumentou. Todos os outros setores exportadores perderam importância em relação aos minérios e combustíveis fósseis.

A quantidade de dinheiro que entrou na Bolívia nesse período foi absurda. Cada ano de Evo Morales significou, em termos de entrada de recursos, quatro anos do governo anterior.

Durante esse período, a Bolívia conseguiu reduzir significativamente a pobreza e a desigualdade. Os avanços foram, proporcionalmente, até maiores do que em outros países da América Latina que também melhoraram nesses indicadores. O dinheiro que entrou com o alto preço das matérias-primas criou uma nova dinâmica no mercado de trabalho, esquentando a demanda por mão-de-obra pouco qualificada na construção civil, no transporte e no comércio. Além disso, Morales adotou certas medidas positivas, como o aumento do salário mínimo e as políticas de transferência de renda.

Os avanços sociais continuaram nos últimos anos do governo Morales?

Todas essas melhorias sociais, em termos de indicadores de pobreza e de desigualdade, desaceleraram quando os preços das matérias-primas começaram a cair, a partir de 2012 e, mais acentuadamente, 2014.

O governo de Evo Morales teve o mérito de, nesse período, seguir um rumo diferente dos governos do Brasil, da Argentina e da Venezuela. Ele conseguiu manter o equilíbrio macroeconômico na fase de desaceleração. Com isso, os bolivianos não sentiram tanto a crise.

O governo de Evo Morales teve o mérito de, nesse período, seguir um rumo diferente dos governos do Brasil, da Argentina e da Venezuela"

Mas, para compensar a queda na entrada de recursos na economia, Morales começou a se endividar e a gastar as reservas internacionais para manter o emprego em alta e a inflação baixa. A partir de 2016, a Bolívia começou a demonstrar uma piora nos indicadores macroeconômicos. A população começou a sentir essa desaceleração de maneira controlada, não muito forte.

A queda de Evo Morales, então, desafia a lógica de que a economia é o que sustenta os governos?

Em 2014, Evo Morales foi reeleito com mais de 60% dos votos. Certamente essa bonança econômica foi um fator muito importante. Seu governo conseguiu manter a sensação de bem estar, o emprego e a inflação baixa. No referendo sobre a possibilidade de Evo Morales se reeleger mais uma vez, porém, a população a demonstrou que queria continuar mantendo essas conquistas, mas também queria que as regras políticas fossem respeitadas.

Evo Morales jurava que ia ganhar o referendo. Imagina, se ele ganhou em 2014 com mais de 60%… A derrota foi uma surpresa para ele. A questão é que, na Bolívia, há certos princípios políticos que são importantes inclusive em nível local.

Existe uma baixa tolerância na população boliviana, principalmente em La Paz, contra a violência do Estado e decisões arbitrárias"

Fazem parte da tradição indígena no país os governos comunitários, principalmente no campo. Um dos princípios dessa cultura é a alternância no poder local das famílias que vivem nessas comunidades.

Em outros setores da sociedade, pesa a memória viva da ditadura militar que se encerrou na década de 80. Existe uma baixa tolerância na população boliviana, principalmente em La Paz, contra a violência do Estado e decisões arbitrárias. Tudo isso explica porque Evo Morales perdeu.

Há alguma semelhança entre as manifestações no Chile e o fenômeno popular que derrubou Evo Morales na Bolívia?

Os dois movimentos foram a favor da democracia, mas em níveis diferentes. No caso do Chile, é uma luta pelo que os cientistas sociais chamam de democracia substantiva, que compreende os direitos sociais, ou seja, o direito à igualdade, à cidadania, à educação, à saúde, à moradia. Os protestos são contra as políticas liberais. Os chilenos estão brigando por direitos sociais. A democracia política não pode existir sem a democracia social.

Os chilenos estão lutando pela democracia substantiva; os bolivianos, pela democracia política"

No caso da Bolívia, a briga foi pela democracia política, ou seja, pelo respeito ao voto, às regras do jogo, à alternância no poder. Neste país, a Constituição não diz que se um governo for de esquerda e for bom, ele pode ferir a Constituição. Isso não está escrito ali, nem está na cabeça das pessoas.

O que acho que está acontecendo no Chile, no Equador, na Bolívia e em outros países da região é uma luta pela democracia, em níveis diferentes.

Sobre o Autor

Diogo Schelp é jornalista com 20 anos de experiência. Foi editor executivo da revista VEJA e redator-chefe da ISTOÉ. Durante 14 anos, dedicou-se principalmente à cobertura e à análise de temas internacionais e de diplomacia. Fez reportagens em quase duas dezenas de países. Entre os assuntos investigados nessas viagens destacam-se o endurecimento do regime de Vladimir Putin, na Rússia, o narcotráfico no México, a violência e a crise econômica na Venezuela, o genocídio em Darfur, no Sudão, o radicalismo islâmico na Tunísia e o conflito árabe-israelense. É coautor dos livros “Correspondente de Guerra” (Editora Contexto, com André Liohn) e “No Teto do Mundo” (Editora Leya, com Rodrigo Raineri).

Sobre o Blog

“O que mantém a humanidade viva?”, perguntava-se o dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Essa é a pergunta que motiva esse blog a desembaraçar o noticiário internacional – e o nacional, também, quando for pertinente – e a lançar luz sobre fatos e conexões que não receberam a atenção devida. Esse é um blog que quer surpreender, escrito por alguém que gosta de ser surpreendido.