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Diogo Schelp

Como seria uma guerra entre EUA e Irã

Diogo Schelp

03/01/2020 11h19

Irã

Manifestante segura foto do general Qassem Soleimani nesta sexta-feira (3), em Teerã. (Foto: WANA/Nazanin Tabatabaee via Reuters)

Nada de III Guerra Mundial. Uma possível guerra entre Estados Unidos e Irã pode adotar muitas formas, inclusive uma variação agravada do conflito atual, de escaladas eventuais de violência, mas dificilmente tomaria a proporção de uma guerra global, como ocorreu em 1939.

O temor de uma guerra entre Estados Unidos e o Irã ganhou força com a execução do general Qassim Suleimani, chefe da Força Quds do Irã, nesta quinta-feira (2), em um bombardeio americano ao aeroporto de Bagdá, no Iraque. 

Os Estados Unidos acusavam Suleimani de estar por trás das "manifestações" violentas contra a embaixada americana em Bagdá. Os Estados Unidos estão certos de não tolerar ações como essas contra suas representações diplomáticas. É preciso lembrar da crise dos reféns na embaixada americana em Teerã, entre 1979 e 1981, e o assassinato do embaixador dos Estados Unidos na Líbia, J. Christopher Stevens, durante ataque ao consulado do país na cidade de Bengazi, em 2012.

A eliminação de Suleimani ocorre depois de uma série de fatos que elevaram as tensões entre Irã e Estados Unidos. Nos últimos meses, o Irã foi acusado de estar por trás dos ataques que danificaram dois navios petroleiros no Estreito de Ormuz e de bombardear duas instalações de petróleo na Arábia Saudita.

O aiatolá Ali Khamenei prometeu vingar a morte de Suleimani. O país tem meios para isso, alguns dos quais estão descritos abaixo, dentro do que se pode considerar um cenário moderadamente pessimista — e o mais provável — para a escalada do conflito, em que ele se alastraria por todo o Oriente Médio.

O cenário otimista, em que o conflito se restringiria a pequenos episódios de retaliações contra alvos militares e embarcações comerciais no Golfo Pérsico, tem baixa probabilidade de acontecer pela natureza explosiva da região. Se há alguma chance de algo dar muito errado na geopolítica do Oriente Médio, pode apostar que é o que vai ocorrer. O cenário mais pessimista, e menos provável, seria o envolvimento direto de outras potências, como a China e a Rússia, do lado iraniano no conflito — o que poderia ganhar contornos de uma III Guerra Mundial.

O cenário moderadamente pessimista, portanto, teria as seguintes consequências:

  • O Irã inicia uma campanha de ataques e sabotagens no Golfo Pérsico com o objetivo de obstruir a estreita passagem para o Oceano Índico por onde é transportado um quinto da produção de petróleo do mundo. Isso faz o preço dos combustíveis fósseis disparar, desestabilizando a economia mundial e provocando recessão tanto em nações industrializadas quanto em países em desenvolvimento, como o Brasil;
  • O Irã regionaliza o conflito, abrindo frentes de batalha contra aliados dos Estados Unidos em todo o Oriente Médio. O grupo xiita libanês Hezbollah começa a lançar foguetes contra Israel, usando como base tanto o território do Líbano como o da Síria (ambos os países fazem fronteira com Israel). Apoiadas militarmente e financeiramente pelo Irã, as milícias hutis do Iêmen, país que vive uma guerra civil desde 2015, intensificam os ataques com mísseis e drones contra alvos da Arábia Saudita, como aeroportos e estações petrolíferas. No Iraque, as milícias xiitas, que possuem forte influência do Irã e têm grande experiência em combates, os mais recentes deles na expulsão do grupo terrorista sunita Estado Islâmico, iniciam uma campanha de ataques e sabotagem contra alvos americanos (os Estados Unidos ainda têm 5.200 militares no Iraque) — como de fato já vem ocorrendo e é um dos motivos para a decisão dos Estados Unidos de eliminar Suleimani;
  • Israel reage ao Hezbollah não apenas bombardeando o Líbano e a Síria, mas também alvos estratégicos no Irã— o governo de Benjamin Netanyahu está há tempos em busca de uma justificativa para destruir a infraestrutura nuclear iraniana, para acabar com as chances de o país construir uma bomba atômica. O Irã revidaria lançando mísseis de médio alcance contra as cidades israelenses;
  • A Arábia Saudita reage aos ataques hutis e ao fechamento do Estreito de Ormuz enviando tropas e sua Força Aérea para auxiliar os Estados Unidos em uma invasão primeiro por ar, depois por terra, do Irã. É a guerra mais letal do século até agora: se a Guerra do Iraque, país com 38 milhões de habitantes, matou 460.000 pessoas, pode-se estimar que a do Irã, com uma população de 82 milhões e um contingente militar que é o dobro do iraquiano, tem potencial para alcançar a marca de 1 milhão de vidas perdidas;
  • Conforme o conflito vai ganhando contornos étnicos e religiosos, ao confirmar um confronto há muito anunciado entre a Arábia Saudita (árabe e sunita) e o Irã (persa e xiita), atentados terroristas começam a pipocar pela região e além dela, ora provocando vítimas civis entre os sunitas, ora entre os xiitas;
  • Mesmo sem envolvimento militar direto, a Rússia e a China veem o conflito como uma ameaça aos seus interesses na região e decidem colocar-se em uma posição contrária aos Estados Unidos, dando apoio político, econômico e militar (por meio da venda de armas) ao aiatolá Ali Khamenei, o líder supremo do Irã;
  • Uma nova onda de refugiados de guerra bate às portas da Europa, que desta vez não consegue contê-la por meios minimamente humanos. A Turquia, que aproveita o conflito regional para esmagar a minoria curda dentro e fora de suas fronteiras, suspende seu acordo com os europeus para usar seu território como uma barreira para os emigrantes, que em números cada vez maiores são barrados na Grécia e nos Balcãs. Grandes campos de refugiados são construídos nesses lugares. O espaço Schengen, a área de livre circulação de pessoas na Europa, é suspenso;
  • Ao fim da guerra, Rússia e China são os maiores beneficiados, em detrimento da Europa, inundada por refugiados, e dos Estados Unidos, que, mesmo vitoriosos, saem enfraquecidos por anos de uma guerra custosa, tanto financeiramente (para se ter uma ideia, a Guerra do Iraque custou 2 trilhões de dólares) quanto internamente (na campanha eleitoral, Trump havia prometido encerrar os envolvimentos militares do país no Oriente Médio) e externamente (os Estados Unidos passam a ser vistos pela comunidade global como um país que não consegue conter as pressões para colocar em uso seu poderio militar). A guerra no Irã, portanto, acelera o declínio americano e dá impulso às ambições da China de se tornar a próxima superpotência mundial.

O cenário acima descrito, repito, é o moderadamente pessimista. Mesmo que o conflito não ganhe proporções globais, como temem alguns, o mundo todo teria muito a perder no caso de uma guerra entre os dois países.

(Parte desse artigo é uma reprodução de uma análise publicada por este blog em junho de 2019).

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Sobre o Autor

Diogo Schelp é jornalista com 20 anos de experiência. Foi editor executivo da revista VEJA e redator-chefe da ISTOÉ. Durante 14 anos, dedicou-se principalmente à cobertura e à análise de temas internacionais e de diplomacia. Fez reportagens em quase duas dezenas de países. Entre os assuntos investigados nessas viagens destacam-se o endurecimento do regime de Vladimir Putin, na Rússia, o narcotráfico no México, a violência e a crise econômica na Venezuela, o genocídio em Darfur, no Sudão, o radicalismo islâmico na Tunísia e o conflito árabe-israelense. É coautor dos livros “Correspondente de Guerra” (Editora Contexto, com André Liohn) e “No Teto do Mundo” (Editora Leya, com Rodrigo Raineri).

Sobre o Blog

“O que mantém a humanidade viva?”, perguntava-se o dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Essa é a pergunta que motiva esse blog a desembaraçar o noticiário internacional – e o nacional, também, quando for pertinente – e a lançar luz sobre fatos e conexões que não receberam a atenção devida. Esse é um blog que quer surpreender, escrito por alguém que gosta de ser surpreendido.