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Diogo Schelp

Pandemia coloca terraplanismo à prova

Diogo Schelp

14/03/2020 16h37

Coronavírus

Coronavírus: uma "fantasia" bem real (Foto: iStock)

Terraplanismo é uma daquelas palavras cujo significado deveria permanecer tão obscuro para a maioria das pessoas quanto as ideias às quais ela se refere. Infelizmente, porém, a essa altura todo mundo sabe o que é terraplanismo: a crença de que a Terra é plana — e não esférica, como já foi comprovado cientificamente repetidas vezes ao longo dos últimos 2000 anos. Por sua teimosia radical em refutar fatos comprovados, o terraplanismo tornou-se sinônimo de obscurantismo e anticientificismo, ou seja, de aversão ao conhecimento científico.

A pandemia do novo coronavírus, porém, está colocando à prova o ceticismo em relação à ciência como um todo, que vai do movimento antivacina à negação do aquecimento global, passando, obviamente, pelo terraplanismo. A razão é a necessidade de sobrevivência: os céticos, principalmente aqueles em posição de liderança, são obrigados a abraçar a ciência para desacelerar a pandemia, evitar contaminação e desenvolver tratamentos efetivos.

O exemplo mais próximo de nós é a mudança de postura do presidente Jair Bolsonaro em relação ao COVID-19. O presidente disse no dia 9 de março que o coronavírus "é mais fantasia" e que "não é isso tudo que a grande mídia propaga". Na quinta-feira (12), depois que a doença chegou ao Palácio do Planalto, mudou o discurso e pediu que as manifestações marcadas para o dia 15 de março em apoio a ele fossem adiadas.

Alguns dos anticientificistas que o apoiam lançaram a hashtag #DesculpeJairMasEuVou. O astrólogo Olavo de Carvalho também desafiou os fatos e compartilhou, na sexta-feira (13), convocação para os atos oficialmente cancelados. Ou seja, ainda que a recomendação dos técnicos do Ministério da Saúde do governo que eles apoiam seja a de ficar em casa e evitar aglomeração de pessoas, o bolsonarismo terraplanista (ou seria mais correto falar em terraplanismo bolsonarista?) prefere dar uma banana para a ciência e fazer o sacrifício patriótico de servir seus militantes como cobaias humanas em plena pandemia.

O que vão dizer se ficarem todos doentes nos dias seguintes? Que a tosse, as dores no corpo e a dificuldade de respirar não passam de fantasias criadas pela grande mídia?

O problema é que esse tipo enfrentamento dos fatos coloca em risco a sociedade como um todo, que se dedica ao esforço coletivo de conter o avanço da doença, não de desafiá-la.

Como se sustentará o discurso terraplanista, ou seja, anticientificista, depois que a pandemia passar? Essa é a mensagem central de um editorial da revista Science, uma das publicações científicas mais respeitadas do mundo, divulgado nesta sexta-feira (13).

No texto, sob o título "Faça-nos o favor", o editor-chefe da Science, o químico H. Holden Thorp, conta que o presidente americano Donald Trump recentemente abordou executivos da indústria farmacêutica e disse-lhes para apressar o desenvolvimento de uma vacina para o COVID-19. Ora, há pouco mais de três anos o mesmo Donald Trump pretendia adotar medidas contra vacinas, que segundo ele fazem mal para a saúde das pessoas. Agora, desesperado porque os impactos econômicos da pandemia podem colocar em risco sua sobrevivência política, ele descobriu que precisa das vacinas, que precisa da ciência.

Acontece que desenvolver uma vacina é algo complexo, porque os processos científicos são complexos: não são terra plana, não se sustentam em milagres. Thorp diz que os cientistas precisam de um ano e meio, no mínimo, para desenvolver uma vacina para o coronavírus. E mais: a estrutura científica que dará conta disso está sendo sucateada pelo governo Trump. Entre os órgãos que tiveram investimentos cortados estão os Institutos Nacionais de Saúde e os Centros de Controle e Prevenção de Doenças, ligados ao governo federal. O governo Trump está há quase quatro anos "prejudicando e ignorando a ciência", escreve Thorp.

Thorp critica também a postura do governo americano de querer sonegar informações relevantes sobre o coronavírus à sociedade. Trump queria que os órgãos científicos submetessem as informações a serem divulgadas ao escrutínio do vice-presidente Mike Pence. Escreve Thorp: "Não é hora de alguém que nega a evolução, as mudanças climáticas e os perigos do cigarro moldar a mensagem pública."

Ou seja, não é hora de dar voz a terraplanistas. É hora de dar voz aos cientistas.

* **

Em tempo: a pandemia coloca à prova não apenas as fantasias anticientificistas da direita, mas também as fantasias científicas da esquerda. Um exemplo disso é a notícia, falsa, de que Cuba desenvolveu a vacina para o novo coronavírus. Essa maluquice circulou com grande fanfarra nas redes sociais pelas mãos de representantes da esquerda brasileira, que afirmaram que agora todo mundo ia querer ir para Cuba. Como escreveu Thorp, não haverá vacina antes de um ano e meio. E, digo eu, certamente não será desenvolvida por Cuba.

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Sobre o Autor

Diogo Schelp é jornalista com 20 anos de experiência. Foi editor executivo da revista VEJA e redator-chefe da ISTOÉ. Durante 14 anos, dedicou-se principalmente à cobertura e à análise de temas internacionais e de diplomacia. Fez reportagens em quase duas dezenas de países. Entre os assuntos investigados nessas viagens destacam-se o endurecimento do regime de Vladimir Putin, na Rússia, o narcotráfico no México, a violência e a crise econômica na Venezuela, o genocídio em Darfur, no Sudão, o radicalismo islâmico na Tunísia e o conflito árabe-israelense. É coautor dos livros “Correspondente de Guerra” (Editora Contexto, com André Liohn) e “No Teto do Mundo” (Editora Leya, com Rodrigo Raineri).

Sobre o Blog

“O que mantém a humanidade viva?”, perguntava-se o dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Essa é a pergunta que motiva esse blog a desembaraçar o noticiário internacional – e o nacional, também, quando for pertinente – e a lançar luz sobre fatos e conexões que não receberam a atenção devida. Esse é um blog que quer surpreender, escrito por alguém que gosta de ser surpreendido.