As ruas falam, mas é preciso alguém para escutá-las
Durante sua campanha vitoriosa para a presidência dos Estados Unidos, Donald Trump dizia estar dando voz a uma maioria silenciosa do povo americano, negligenciada por uma elite política e econômica que, aboletada nos grandes centros urbanos das costas leste e oeste, dedicava-se a defender seus próprios interesses econômicos e a dar importância desproporcional aos direitos de algumas minorias. A maioria silenciosa, dizia Trump, não era escutada pelos repórteres de política da grande imprensa sediada em Nova York, Washington e Los Angeles.
Algumas semanas antes das eleições americanas, fiz check-in em um hotel em Baltimore, reduto democrata, e escutei do recepcionista, quase sussurrando, como se me contasse um segredo: "Veio cobrir as eleições? Não acredite no que a imprensa daqui diz, que Hillary Clinton vai vencer. O apoio a Trump é muito maior do que se quer fazer crer." Como já sabemos, ele estava certo. Os analistas políticos e os estatísticos erraram o diagnóstico.
De fato, muitos jornalistas americanos, tanto quanto os políticos democratas, não souberam entender o que ocorria na "América profunda" e subestimaram a força eleitoral da tal "maioria silenciosa" de Trump. (A expressão "maioria", aqui, precisa ser entendida dentro das regras do jogo da democracia americana, pois Trump venceu no colégio eleitoral, mas teve menos votos na contagem geral.)
Jair Bolsonaro foi eleito com uma retórica parecida com a de Trump, de passar por cima do politicamente correto para trazer de volta um passado glorioso, dando voz a uma parcela esquecida da população que se vê como legítima representante da pátria. A massa de apoiadores de Bolsonaro, porém, nada tinha de "silenciosa". Já era bem conhecida, pois engrossou os protestos que exigiram o impeachment de Dilma Rousseff, ainda que não tenha sido a única a ir para as ruas naquele momento.
Já se disse que, depois das jornadas de junho de 2013, dos atos pró-impeachment de 2015 e do movimento #elenão de 2018, os brasileiros pegaram gosto pelas ruas. Este mês de maio comprova mais uma vez esse fenômeno. Os atos deste domingo 26, em apoio a Bolsonaro, foram convocados como contraponto às manifestações do dia 15, contra os cortes nos recursos para a educação.
O tamanho de cada mobilização tem importância para saber para que lado pende a balança do humor popular, se a favor ou contra o governo, mas não deve servir para desqualificar nenhuma delas. As ruas precisam ser escutadas, sejam as do dia 15, sejam as deste domingo.
Não se deve esperar das manifestações uma coerência de propósitos absoluta. A cacofonia é a regra, assim como é a da voz das redes sociais. Mas é possível prestar atenção a algumas pautas que sobressaem. Uma das que aparecem nos protestos deste domingo é a insatisfação com a atuação do Congresso e do STF. Atribui-se ao primeiro a dificuldade de Bolsonaro mostrar a que veio no cargo máximo do país. Deputados e senadores devem estar atentos para o que isso representa, mas não podem abdicar de seu papel de ser um contrapeso ao poder presidencial.
O presidente, por sua vez, deveria escutar a voz das ruas de hoje não apenas com deleite, por expressarem um apoio apaixonado a ele, mas também como um sinal de alerta. Os manifestantes querem ver as reformas que ele prometeu aprovadas. E isso não depende apenas dos parlamentares. O presidente também precisa mostrar empenho. Em algum momento, atribuir seu fracasso a teorias conspiratórias e à resistência dos outros não vai bastar para aplacar a voz das ruas.
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