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Diogo Schelp

Um governo revanchista é um governo autoritário

Diogo Schelp

07/08/2019 11h22

Jair Bolsonaro

O presidente Jair Bolsonaro (Foto: Igo Estrela/Estadão Conteúdo)

Em 1964, o historiador americano Richard Hofstadter publicou na revista Harper's um ensaio com o título "O Estilo Paranoico na Política Americana". Em um dos trechos, em tradução livre, ele escreveu o seguinte: "O inimigo parece ser, de muitas maneiras, uma projeção de si mesmo: tanto os aspectos ideais quanto os inaceitáveis de si mesmo são atribuídos a ele. O paradoxo fundamental do estilo paranoico é a imitação do inimigo." Um traço essencial do bolsonarismo, nos últimos anos, foi a noção de que os governos petistas usavam o aparato do Estado para beneficiar causas partidárias e punir seus opositores. Uma vez no poder, Jair Bolsonaro passou a fazer exatamente a mesma coisa. É o que comprova a atitude revanchista do governo demonstrada em diversos episódios desta e das últimas semanas.

Comecemos pelas notícias mais recentes. Nesta terça-feira (6), o governo publicou uma medida provisória liberando empresas de capital aberto da obrigação de publicar balanços em jornais impressos. Trata-se de uma fonte de receita importante para veículos de todos os estados. Pode-se discutir, do ponto de vista técnico, a necessidade de se manter essa obrigação em tempos de internet. Mas Jair Bolsonaro relacionou a medida súbita, sem discussão pública com os setores envolvidos, diretamente ao seu desconforto com as críticas que recebe na imprensa. "Eu retribuí parte daquilo que grande parte da mídia me atacou (sic)." Depois ele tentou voltar atrás, dizendo que "não é uma retaliação contra a imprensa", mas a mensagem já tinha sido passada. O o presidente deixou claro que ele se acha no direito de usar os recursos do Estado para punir quem não concorda com ele ou quem simplesmente cumpre o dever profissional de informar o público. O nome disso é vingança. E é a imitação de um comportamento que se atribuía ao inimigo.

Um amigo, Donald Trump, tem feito a mesma coisa. O presidente americano usou o Departamento de Justiça para se opor à fusão da AT&T, uma empresa de telecomunicações, com o grupo de mídia Time Warner, dono do canal de notícias CNN. Como não obteve resultado, agora faz campanha no Twitter para que seus eleitores cancelem seus contratos com a AT&T. Tudo isso apenas porque Trump não consegue conviver com o contraditório. Como, aliás, ocorre com todos os governantes autoritários.

Postura idêntica parece estar por trás do cancelamento do contrato da Petrobras com o escritório de advocacia do presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, uma semana depois de Jair Bolsonaro direcionar sua artilharia verbal contra o pai do advogado, um desaparecido da ditadura militar. Coincidência? Nesta quarta-feira (7), Bolsonaro defendeu o cancelamento do contrato.

Quando criticado por suas falas sobre a tortura durante o período militar, Bolsonaro dobrou a aposta e trocou, por gente que pensa como ele, quatro dos sete integrantes da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos. Dois dos indicados são militares. Nos Estados Unidos, Trump fez algo semelhante quando nomeou para a chefia do censo um defensor da manipulação dos dados demográficos em benefício eleitoral do Partido Republicano. É a velha fábula das raposas cuidando do galinheiro.

Tem mais, é claro. O governo que diz se guiar pela avaliação do mérito e por critérios técnicos em suas decisões agora deu para censurar obras de desafetos. Como revelou reportagem de Patrícia Campos Mello, o Itamaraty vetou a publicação de uma biografia sobre Alexandre de Gusmão, um pioneiro da diplomacia brasileira, porque o prefácio foi escrito pelo embaixador Rubens Ricupero, que o chanceler Ernesto Araújo vê como desafeto. Ora, os critérios não são técnicos? Ricupero é um dos maiores especialistas em história da diplomacia brasileira, autor de obras essenciais, como a recém-publicada "A diplomacia na construção do Brasil – 1750-2016" (Versal Editores). Mas não. A chancelaria bolsonarista prefere se render à retaliação ideológica.

Parafraseando Hofstadter, o paradoxo fundamental do estilo paranoico do governo Bolsonaro é a imitação do inimigo.

Sobre o Autor

Diogo Schelp é jornalista com 20 anos de experiência. Foi editor executivo da revista VEJA e redator-chefe da ISTOÉ. Durante 14 anos, dedicou-se principalmente à cobertura e à análise de temas internacionais e de diplomacia. Fez reportagens em quase duas dezenas de países. Entre os assuntos investigados nessas viagens destacam-se o endurecimento do regime de Vladimir Putin, na Rússia, o narcotráfico no México, a violência e a crise econômica na Venezuela, o genocídio em Darfur, no Sudão, o radicalismo islâmico na Tunísia e o conflito árabe-israelense. É coautor dos livros “Correspondente de Guerra” (Editora Contexto, com André Liohn) e “No Teto do Mundo” (Editora Leya, com Rodrigo Raineri).

Sobre o Blog

“O que mantém a humanidade viva?”, perguntava-se o dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Essa é a pergunta que motiva esse blog a desembaraçar o noticiário internacional – e o nacional, também, quando for pertinente – e a lançar luz sobre fatos e conexões que não receberam a atenção devida. Esse é um blog que quer surpreender, escrito por alguém que gosta de ser surpreendido.