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Diogo Schelp

Boicote é uma forma injusta de punir as pessoas erradas

Diogo Schelp

29/08/2019 15h38

Boicote

A atriz Scarlett Johansson em propagando de marca de bebidas israelenses que foi boicotada (Foto: Rex Features/Divulgação)

E se os brasileiros começarem a boicotar as marcas que boicotam os brasileiros, tais como Timberland, Dickies, Kipling, Vans, Kodiak, Terra, Walls, Workrite, Eagle Creek, Eastpack, JanSport, The North Face, Napapijri, Bulwark, Altra, Icebreaker, Smartwoll e Horace Small? Segundo o Centro das Indústrias de Curtumes do Brasil (CICB), essas marcas de roupas e calçados suspenderam a compra de couro brasileiro por causa das queimadas na Amazônia. 

A sugestão acima, de boicote a essas marcas como resposta ao boicote, é meramente retórica. Não teria efeito nenhum, assim como o boicote da empresa VF Corporation, que detém a maioria delas, ao couro brasileiro não terá qualquer efeito sobre as queimadas. Trata-se apenas de uma medida injusta que pune as pessoas erradas.

A preocupação vem tarde. A VF Corporation avisou que suspendeu as compras enquanto não receber informações sobre a origem dos produtos. Ou seja, ela quer saber se o couro que compra vem de áreas desmatadas. Ora, já deveria ter tido essa preocupação há muito tempo. Só agora se deu conta de que existia esse risco?

O problema é que, enquanto a empresa não chega a uma conclusão sobre a origem do couro, cortumes que fazem tudo certinho e respeitam as leis ambientais serão punidos por algo que não fizeram.

Ao fim e ao cabo, tudo o que empresas como a VF Corporation querem é, em meio à gritaria internacional para que se boicote a economia brasileira, se antecipar à possibilidade de que os consumidores europeus e americanos descubram que seus produtos são feitos com insumos brasileiros.

Todo boicote como esse esconde uma dupla moral ou, para usar um chavão, a adoção de dois pesos, duas medidas. Para ser coerente, quem organiza um boicote deveria deixar de comprar qualquer insumo de qualquer país que desrespeita o mesmo tipo de regra. Seria necessário, por exemplo, boicotar os fornecedores da Índia, país que é o sexto maior exportador de couro do mundo e que não pode ser considerado exatamente um campeão da preservação ambiental.

Os boicotes contra Israel são um ótimo exemplo da demagogia embutida nesse tipo de pressão política.

Existe uma campanha de boicote a produtos israelenses como forma de pressionar o país a recuar de suas políticas de assentamentos ilegais em território palestino. O movimento é conhecido como BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções) e já dura vários anos. Nesse período, só serviu para ajudar a espalhar uma postura de hostilidade contra o povo israelense, sem qualquer efeito na alteração das políticas governamentais. A punição a empresas israelenses e a tentativa de coibir investimentos no país apenas passa a mensagem de que toda a população israelense é culpada pelo que acontece na Cisjordânia.

O mesmo tipo de postura pode ser verificado nas campanhas de boicote ao Brasil. A revista britânica The New Statesman, por exemplo, publicou um artigo na semana passada com o seguinte título: "O mundo tem o poder de fazer o brasileiro Bolsonaro pagar pela sua destruição da Amazônia". E, no subtítulo: "A melhor arma contra o presidente de extrema direita é causar dano à economia brasileira".

Veja bem: causar dano à economia brasileira! E ainda há brasileiros torcendo e fazendo campanha para que isso aconteça.

Pouco a pouco, o ódio a Bolsonaro no exterior está se transformando em ódio aos brasileiros. Isso acontece porque, no imaginário que se tem de outros países, é muito comum confundir governo com povo. É a mesma lógica de quem cultiva o antiamericanismo porque não gosta da política externa do governo americano.

Mas voltemos a Israel.

Em 2014, a atriz Scarlett Johansson foi crucificada nas redes sociais e convidada a pedir baixa de seu posto como embaixadora da ong Oxfam porque aceitou ser garota propaganda da SodaStream, uma marca de refrescos israelense que construiu uma fábrica na Cisjordânia.

Muito corajosamente, Johansson não abandonou seu contrato com empresa e ponderou, corretamente, que não estava claro que o boicote era uma forma justa de lidar com a questão territorial na Palestina.

Qualquer um que já foi à Cisjordânia sabe que praticamente não há empregos na região. Os jovens passam os dias jogando sinuca ou fumando narguilé, porque simplesmente não há nada para fazer. As políticas de Israel podem ter uma parcela de culpa nisso? Talvez. Mas também é certo que investimentos de fora, sejam de empresas israelenses, sejam de outros países, é tudo de que o território mais precisa. A fábrica da SodaStream emprega centenas de palestinos. Qual é o sentido de boicotá-la?

Agora um exemplo do duplo padrão moral nos boicotes a Israel.

Em 2018, o site de hospedagens Airbnb decidiu que moradores da Cisjordânia não poderiam mais colocar seus imóveis para alugar na plataforma, com o argumento de que se tratava de um território em disputa. Isso afetava principalmente colonos israelenses.

A empresa foi criticada por fazer uma punição seletiva contra os israelenses, já que continuava permitindo o aluguel de imóveis situadas em regiões de conflito territorial em outras partes do mundo. Ao ser acusado de demagogia, o Airbnb incluiu a Abcásia e a Ossétia do Sul, duas regiões que se separaram da Geórgia com patrocínio russo, na lista de lugares banidos do site. Quanta bondade e sentimento justiça.

Ou seja, boicotes são ótimos para chamar a atenção para quem os organiza ou para quem adere a eles, mas pouco ou nada contribuem para a solução política de um problema. Os punidos acabam sendo, como sempre, as pessoas comuns, trabalhadores, pequenos empresários e agricultores honestos.

Nos últimos dias, iniciou-se uma campanha nas redes sociais da Alemanha para que os consumidores colem em produtos brasileiros, nos supermercados, recados como o da foto abaixo, em que se lê: "Não compre carne da América do Sul! Salve a Amazônia!" Pobre Argentina, um país sul-americano e exportador de carne, mas que não tem nem um metro quadrado de Floresta Amazônica — vai pagar o pato junto com o Brasil.

A ignorância, no fim das contas, é o maior combustível para os boicotes.

Sobre o Autor

Diogo Schelp é jornalista com 20 anos de experiência. Foi editor executivo da revista VEJA e redator-chefe da ISTOÉ. Durante 14 anos, dedicou-se principalmente à cobertura e à análise de temas internacionais e de diplomacia. Fez reportagens em quase duas dezenas de países. Entre os assuntos investigados nessas viagens destacam-se o endurecimento do regime de Vladimir Putin, na Rússia, o narcotráfico no México, a violência e a crise econômica na Venezuela, o genocídio em Darfur, no Sudão, o radicalismo islâmico na Tunísia e o conflito árabe-israelense. É coautor dos livros “Correspondente de Guerra” (Editora Contexto, com André Liohn) e “No Teto do Mundo” (Editora Leya, com Rodrigo Raineri).

Sobre o Blog

“O que mantém a humanidade viva?”, perguntava-se o dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Essa é a pergunta que motiva esse blog a desembaraçar o noticiário internacional – e o nacional, também, quando for pertinente – e a lançar luz sobre fatos e conexões que não receberam a atenção devida. Esse é um blog que quer surpreender, escrito por alguém que gosta de ser surpreendido.