Topo

Diogo Schelp

Jair Bolsonaro foi Jair Bolsonaro na ONU

Diogo Schelp

24/09/2019 11h42

O presidente Jair Bolsonaro em discurso na ONU (Foto: Lucas Jackson/Reuters)

Quem esperava um discurso contemporizador, se decepcionou. Jair Bolsonaro foi Jair Bolsonaro na abertura oficial da Assembleia Geral da ONU, nesta terça-feira (24). O presidente brasileiro não se deu ao trabalho de dizer ao mundo o que o mundo queria ouvir.

Ele apresentou-se como o presidente que enfrenta uma cruzada contra o socialismo, reavivando uma retórica remanescente da Guerra Fria.

Não foi um discurso para inglês ver e tampouco foi o discurso que mostraria, de uma vez por todas,  a verdade sobre a preservação ambiental no Brasil. Neste ponto, Bolsonaro gastou mais tempo afirmando que os povos indígenas estão do seu lado e que também veem com desconfiança uma política que, segundo ele, os obriga a viver na pobreza, sem poder explorar as riquezas de suas terras.

O presidente, porém, não apresentou nenhum dado para mostrar que há um esforço do seu governo para combater o desmatamento.

Apresentou, sim, números que mostram que o Brasil preserva o ambiente, como o fato de que apenas uma pequena parcela do território é usada para a agricultura e que grande parte da Amazônia está de pé.

Mas esse é o legado que ele recebeu de outros governos. Faltou dizer o que, de concreto, ele pretende fazer a respeito daqui para frente.

O que Bolsonaro pensa sobre a defesa do meio ambiente o mundo inteiro já sabe: desapreço pelo que ele considera parte de uma "uma indústria da multa" para infrações das leis ambientais, desprezo pela demarcação de terras indígenas e unidades de conservação, submissão da pauta ambiental à agenda do agronegócio (em vez de equilíbrio entre as duas) e ceticismo em relação à responsabilidade humana no aquecimento global.

Ele não disse nada, em seu discurso na ONU, que desfizesse essa imagem antiambientalista.

Em vez disso, o que a comunidade internacional vai registrar de sua fala são os torpedos direcionadaos à "mídia" (ele se diz vítima de "ataques sensacionalistas da imprensa mundial"); o tempo desperdiçado em espezinhar o irrelevante, ainda que desprezível, regime cubano; a referência obscura ao Foro de São Paulo, que poucos líderes mundiais vão compreender; as críticas nada veladas ao presidente francês Emmanuel Macron ("desrespeitoso" e  "colonialista"); a caracterização do cacique Raoni como um fantoche das ongs ambientais; a menção a um certo "ambientalismo radical"; o rechaço generalista a uma "ideologia" não especificada que teria tomado conta da imprensa, das escolas, da universidade e da família; e a denúncia de um complô para destruir a "identidade biológica das crianças", numa referência às questões de gênero.

O único momento ponderado do discurso foi a defesa da liberdade religiosa, em que tomou o cuidado de incluir não apenas cristãos e judeus entre as vítimas de perseguição, mas também os muçulmanos.

O presidente terminou sua fala com uma tirada que certamente vem da lavra de seu chanceler antiglobalista, Ernesto Araújo, ao criticar certos "interesses globais abstratos".

Bolsonaro disse na ONU que salvou o Brasil do socialismo. Mas não salvou o país de passar vergonha em nível global.

Bolsonaro na ONU: Veja a íntegra do polêmico discurso

UOL Notícias

Sobre o Autor

Diogo Schelp é jornalista com 20 anos de experiência. Foi editor executivo da revista VEJA e redator-chefe da ISTOÉ. Durante 14 anos, dedicou-se principalmente à cobertura e à análise de temas internacionais e de diplomacia. Fez reportagens em quase duas dezenas de países. Entre os assuntos investigados nessas viagens destacam-se o endurecimento do regime de Vladimir Putin, na Rússia, o narcotráfico no México, a violência e a crise econômica na Venezuela, o genocídio em Darfur, no Sudão, o radicalismo islâmico na Tunísia e o conflito árabe-israelense. É coautor dos livros “Correspondente de Guerra” (Editora Contexto, com André Liohn) e “No Teto do Mundo” (Editora Leya, com Rodrigo Raineri).

Sobre o Blog

“O que mantém a humanidade viva?”, perguntava-se o dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Essa é a pergunta que motiva esse blog a desembaraçar o noticiário internacional – e o nacional, também, quando for pertinente – e a lançar luz sobre fatos e conexões que não receberam a atenção devida. Esse é um blog que quer surpreender, escrito por alguém que gosta de ser surpreendido.