Quando a obstinação dos governantes passa do limite
Obstinação, tenacidade, persistência. Não se pode esperar do líder de uma nação outra coisa que não seja a busca incansável por atingir seus objetivos. Um governante inconstante, que não sabe o que quer e vacila em suas ações evidentemente tem tudo para fracassar e levar seu país a lugar algum.
O problema é quando a obstinação se transforma em obsessão. Ou seja, quando ela deixa de ser a teimosia saudável que serve para trazer avanços concretos para a população e passa a ser uma preocupação irracional com algo que sequer é tão relevante para solucionar os grandes problemas nacionais.
Ou, então, quando à frente de objetivos que beneficiam a nação como um todo são colocados os interesses pessoais do líder.
Ou, ainda, quando no lugar de metas, o que se perseguem são pessoas.
Esta semana, a Câmara dos Representantes dos Estados Unidos dará prosseguimento às investigações para a abertura de um processo de impeachment contra o presidente Donald Trump, suspeito de ter pressionado um governante de outro país a produzir informações danosas a um adversário político.
A mais recente encrenca em que se meteu Trump é fruto de uma obsessão.
Ideia fixa
Thomas Bossert, ex-conselheiro de Segurança Interna de Trump, revelou neste domingo (29), em entrevista a um canal de TV, que desde o início do governo, há quase três anos, o presidente manifesta uma crença profunda em uma teoria da conspiração segundo a qual a verdadeira interferência nas eleições presidenciais de 2016 — na qual ele foi vitorioso — foi a da Ucrânia em favor dos democratas, e não a da Rússia em seu favor.
De nada adiantavam os esforços de Bossert e outros assessores em explicar para o presidente, com fatos e material de inteligência, que a tese não tinha sustentação. Trump simplesmente se recusava a escutá-los, preferindo os conselhos de pessoas de fora da administração, como o seu advogado e ex-prefeito de Nova York, Rudolph Giuliani.
Pois descobriu-se este mês que Trump continua obcecado com as relações entre a Ucrânia e os democratas, a ponto de ter solicitado, em telefonema realizado no último dia 25 de julho, ao recém-empossado presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, que mandasse investigar as ligações profissionais de Hunter Biden, filho do pré-candidato democrata à presidência Joe Biden, com uma empresa de gás natural do país.
Peso da obsessão
Suspeita-se que Trump tenha usado uma ajuda militar de mais de 300 milhões de dólares como incentivo para que o governo ucraniano o ajudasse a conseguir informações prejudiciais a Biden, um de seus adversários potenciais para as eleições de 2020.
Isso configuraria abuso de poder e quebra de confiança. Não é por outro motivo que a Câmara dos Representantes, que tem a maioria das cadeiras ocupadas por democratas, decidiu investigar o caso. É possível que ainda esta semana o autor da denúncia que originou o escândalo ucraniano seja ouvido em uma comissão da Câmara.
Muita água ainda precisa rolar, no entanto, para que a nau do impeachment avance.
O que fica de lição, por enquanto, é que se Trump afundar, será pelo peso da obsessão.
Nos trópicos
Nós aqui nos trópicos também temos um presidente obcecado. Seus apoiadores dirão que o que ele tem é aquela obstinação positiva de que falei no começo desse artigo.
Mas isso cai por terra se analisarmos os temas mais recorrentes nas falas e ações do presidente. Bolsonaro tem deixado o gerenciamento da economia a cargo do ministro Paulo Guedes, intrometendo-se apenas pontualmente quando algo parece indigesto para sua base eleitoral, e mal se envolveu na articulação para o andamento da reforma da Previdência, que o Congresso abraçou meio que por inércia.
Seu empenho se faz mais evidente em temas como a liberação das armas ou em medidas calculadas para prejudicar as fontes de recurso para a imprensa.
O caso das armas é um exemplo de obsessão, pois tem dois ingredientes essenciais: é um tema com o qual o presidente tem uma relação pessoal (ele é um entusiasta do tiro) e é uma solução micro (o direito à defesa pessoal) para um problema macro (a alta criminalidade do país).
Pode-se discutir se o Estado pode ou não tirar do cidadão o direito de possuir e portar armas, mas o fato é que essa medida não irá diminuir os índices de criminalidade.
Se estivesse comprovado que essa relação de causa e efeito existe, mesmo, até seria possível falar em obstinação.
Mas não passa de um obsessão irracional, pois a preocupação com o assunto é desproporcional ao seus supostos benefícios como política pública.
Fantasma da Guerra Fria
O mesmo vale para a referência ao socialismo como o grande fantasma a ser combatido na atualidade — tema que permeou o discurso de Bolsonaro na ONU.
O socialismo não passa disso, mesmo: um fantasma, que de resto está morto e enterrado.
Nem a Venezuela pode ser considerada um sistema socialista: setores estratégicos foram estatizados e os militares controlam o setor de abastecimento, mas pergunte aos venezuelanos sobre a boliburguesia, a elite empresarial que fatura alto no país graças aos contatos e as parcerias com funcionários do governo.
Mais uma vez, o que Bolsonaro demostra é uma preocupação irracional por um fenômeno deslocado da realidade. Trata-se, portanto, de uma obsessão.
A obsessão encontra terreno fértil na mente de lideranças que têm dificuldade de escutar o contraditório.
Um líder obstinado, quando escuta uma crítica ou recebe uma informação que desmente suas convicções, reformula seus métodos e soluções sem perder de vista as prioridades.
Já o líder obcecado, quando confrontado com um fato que contraria suas crenças preestabelecidas, demite o mensageiro.
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