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Diogo Schelp

Zumbilândia na Arábia Saudita

Diogo Schelp

29/10/2019 12h05

Entrada do cinema Vox, em Riade (Foto: Diogo Schelp/UOL)

De Riade

Os zumbis invadiram a Arábia Saudita. Eles e o Coringa do Batman, a Malévola da Disney e o Abominável Homem das Neves. Personagens como esses não podiam ser vistos em público até um ano e meio atrás. Era proibido.

Durante 35 anos, não era permitido aos sauditas assistir a filmes em cinemas. A restrição foi imposta na década de 80 por pressão de clérigos islâmicos conservadores.

Em dezembro de 2017, a proibição caiu por iniciativa do príncipe herdeiro Mohammed bin Salman como parte do Vision 2030, seu projeto de transformação econômica, social e cultural para o país. Em abril do ano passado, foram inauguradas as primeiras salas de cinema.

Muito rapidamente, os sauditas incorporaram a ida ao cinema ao seu estilo de vida. As salas estão quase sempre cheias, como foi o caso da exibição de "Zumbilândia 2 – Atire Duas Vezes", nesta segunda-feira (28), às 20h, em um dos complexos da rede VOX Cinema, em um shopping center da capital Riade.

Na fila dos ingressos, as roupas bicolores dos homens (composta pelo thobe, "vestido" branco masculino, e pelo lenço vermelho e branco que protege a cabeça) alternam-se aleatoriamente com o preto completo da abaya das mulheres (que na maioria dos casos cobre tudo, da cabeça aos pés, com exceção dos olhos e das mãos).

Cinema

Homens e mulheres separados em café de shopping em Riade: preto para elas, branco e vermelho para eles (Foto: Diogo Schelp/UOL)

Um jovem casal deixa transparecer, apesar da ausência de carícias públicas, um relacionamento marcado pela cumplicidade, algo perceptível em pequenos detalhes como a maneira como decidem juntos a que filme assistir.

Enquanto do lado de fora homens e mulheres quase não se misturam, a não ser quando são parentes, nas salas de cinema não há divisão por gênero. Ali, um grupo de moças senta-se ao lado de dois rapazes desconhecidos, uma proximidade incomum em uma sociedade onde as mulheres devem evitar de todas as formas qualquer tipo de contato físico com estranhos. (Aquelas que trabalham diretamente com o atendimento ao público, por exemplo no caixa de um café, costumam usar luvas de látex.)

No escurinho do cinema, as jovens sentem-se mais à vontade para afastar o pano que esconde o rosto ou até para soltar o lenço que cobre os cabelos.

Uma funcionária, depois de ajudar os clientes a encontrar seus lugares, permanece no fundo da sala, de vigia. A abaya preta auxilia na camuflagem. Lanterninha 2.o?

Cinema

Casal saudita na fila do ingresso (Foto: Diogo Schelp/UOL)

Antes do filme começar, a tela mostra propagandas de carro, de perfume e da campanha pela prevenção do câncer de mama, que de maneira sutil compara os detectores antifurto das lojas de departamento ao exame de ultrassom.

Zumbilândia 2 tem classificação indicativa de 15 anos na Arábia Saudita. No Brasil, a idade mínima para ver mortos-vivos sendo decepados, esmagados e espatifados a tiros é de 16 anos.

A julgar pela reação da plateia na sala lotada, os sauditas gostam de romance, riem dos diálogos que envolvem ciúmes, mas não acham graça nas piadas de cunho sexual (quando os personagens fazem uma analogia entre a penetração e o ato de estacionar, por exemplo) e tampouco nas referências ao uso de drogas (maconha em grande quantidade, no caso).

Nem todos os roteiros parecem talhados para o público local, é claro. Mas isso pouco importa. As novas opções de lazer dão à população, ao menos àqueles que têm dinheiro para desfrutar, uma sensação maior de liberdade. É exatamente o que o príncipe herdeiro quer. Mas que fique na sensação.

Os zumbis invadiram a Arábia Saudita. E os sauditas estão adorando.

Riade

Cartazes de cinema em Riade, na Arábia Saudita (Foto: Diogo Schelp/UOL)

 

Riade cinema

Mulheres totalmente cobertas pela abaya preparam-se para entrar no cinema em Riade (Foto: Diogo Schelp/UOL)

 

* O jornalista viajou a convite do governo da Arábia Saudita.

Sobre o Autor

Diogo Schelp é jornalista com 20 anos de experiência. Foi editor executivo da revista VEJA e redator-chefe da ISTOÉ. Durante 14 anos, dedicou-se principalmente à cobertura e à análise de temas internacionais e de diplomacia. Fez reportagens em quase duas dezenas de países. Entre os assuntos investigados nessas viagens destacam-se o endurecimento do regime de Vladimir Putin, na Rússia, o narcotráfico no México, a violência e a crise econômica na Venezuela, o genocídio em Darfur, no Sudão, o radicalismo islâmico na Tunísia e o conflito árabe-israelense. É coautor dos livros “Correspondente de Guerra” (Editora Contexto, com André Liohn) e “No Teto do Mundo” (Editora Leya, com Rodrigo Raineri).

Sobre o Blog

“O que mantém a humanidade viva?”, perguntava-se o dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Essa é a pergunta que motiva esse blog a desembaraçar o noticiário internacional – e o nacional, também, quando for pertinente – e a lançar luz sobre fatos e conexões que não receberam a atenção devida. Esse é um blog que quer surpreender, escrito por alguém que gosta de ser surpreendido.