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Diogo Schelp

Cristina Kirchner volta ao poder como protagonista ou coadjuvante?

Diogo Schelp

10/12/2019 04h03

Cristina Kirchner

Cristina Kirchner comparece a tribunal para responder a acusações de corrupção no dia 2 de dezembro (Foto: Agustin Marcarian/Reuters)

Foi uma jogada que surpreendeu os argentinos — e que, ao menos como estratégia eleitoral, deu certo. Os próximos quatro anos dirão se funcionou também como estratégia de poder.

Em maio deste ano, a senadora e ex-presidente Cristina Fernández de Kirchner, então líder nas pesquisas de intenção de voto para as eleições presidenciais de outubro, anunciou que se candidataria a vice em uma chapa encabeçada por Alberto Fernández (que foi chefe de gabinete no início do seu primeiro mandato, mais de uma década atrás).

A decisão não era apenas inusitada pelo fato de Kirchner ser a favorita para conquistar um terceiro mandato como presidente, mas também porque ela e Fernández haviam rompido anos antes — a ponto de, em 2012, um programa de TV onde o ex-chefe de gabinete dava uma entrevista ao vivo ter sido tirado do ar por pressão da presidente.

Cálculo eleitoral

Ao colocar-se como vice na chapa de Alberto Fernández, Cristina Kirchner removeu dois obstáculos para sua volta ao poder. O primeiro são os processos por corrupção aos quais ela responde na Justiça. Em seu cálculo, as acusações atrapalhariam uma campanha presidencial em que ela estivesse na linha de frente.

Como candidata a vice, ela não estaria tão exposta. De fato, as idas ao tribunal para responder aos processos foram frequentes nos meses que se seguiram. A última foi no dia 2 de dezembro, já na condição de vice-presidente eleita.

O segundo obstáculo era a rejeição ao seu nome. Apesar de liderar as pesquisas, para boa parte do eleitorado seu nome e sobrenome ainda estavam associados às políticas desastrosas que legaram uma situação econômica que seu sucessor, Mauricio Macri, não conseguiu resolver.

Alberto Fernández era visto como mais moderado e fez questão de reforçar essa imagem ao longo da campanha — prometendo, por exemplo, não dar calote na dívida externa contraída por Macri, apenas afirmando que negociaria novos prazos.

O papel secundário que Cristina Kirchner deu para si na chapa presidencial pode ter servido para vencer a resistência de uma parcela do eleitorado, mas não acalmou os mercados. Prova disso é que, após a vitória da dupla nas primárias de agosto, a bolsa portenha despencou e o dólar disparou.

Quem vai governar?

Alguns analistas garantem que, por mais que Kirchner almeje comandar o país, o poder de fato está nas mãos de Fernández, que não é nenhum novato na política e saberá conduzir as coisas do seu jeito, com mais moderação.

Neste caso, um dos desafios do novo presidente argentina será manter a vice a uma distância segura das decisões mais prementes para o país. Mas não poderá escanteá-la e mantêm-la em uma posição meramente figurativa, por duas razões ligadas entre si: primeiro, porque Cristina Kirchner comanda um bloco importante do peronismo, o kirchnerismo; segundo, porque o vice-presidente, na Argentina, é também presidente do Senado.

Peronistas unidos

Durante quase todo o governo de Mauricio Macri, o peronismo que lhe fazia oposição estava dividido. Duas alas predominavam: uma, mais pragmática, ligada aos interesses dos governadores, e outra, kirchnerista, mais radical e mais ideológica, ligada à ex-presidente.

Macri desperdiçou a chance de negociar e trazer para o seu lado a ala não-kirchnerista do peronismo.

Cristina Kirchner, agora, trabalha para unir o peronismo em torno do governo Fernández. Como presidente do Senado, esse papel ganha ainda mais relevo. Desde que a dupla Fernández/Kirchner foi eleita, Cristina já conseguiu incorporar 41 senadores ao bloco peronista pró-governo, a Frente para Todos.

Isso é suficiente para aprovar qualquer projeto de lei do Executivo e apenas sete votos a menos dos dois terços necessários para iniciar uma reforma constitucional, para derrubar um presidente ou juiz da Corte Suprema e para nomear um procurador-geral.

Obter os dois terços na Câmara dos Deputados seria uma tarefa mais complicada, mas de qualquer forma os números no Senado confirmam que, ainda que não tenha poder para dar as cartas diretamente, Cristina Kirchner mantém-se como uma articuladora política essencial para que Fernández desfrute de apoio legislativo para aprovar as medidas que planeja.

Força política

Cristina Kirchner foi presidente da Argentina entre 2007 e 2015, depois de quatro anos como primeira-dama na gestão do seu marido Néstor Kirchner (falecido em 2010).

Durante seu governo, a Argentina replicou em muitos aspectos a retórica, o autoritarismo e o estilo de governar disseminados pelo venezuelano Hugo Chávez.

Como vice-presidente, Cristina Kirchner dificilmente conseguirá trazer o bolivarianismo de volta à Argentina. Mas não se pode subestimar sua renovada capacidade de influenciar a política nacional.

Cristina Kirchner voltou — e as alianças que ela está construindo no Senado mostram que ela não vai se contentar com o papel de coadjuvante.

Sobre o Autor

Diogo Schelp é jornalista com 20 anos de experiência. Foi editor executivo da revista VEJA e redator-chefe da ISTOÉ. Durante 14 anos, dedicou-se principalmente à cobertura e à análise de temas internacionais e de diplomacia. Fez reportagens em quase duas dezenas de países. Entre os assuntos investigados nessas viagens destacam-se o endurecimento do regime de Vladimir Putin, na Rússia, o narcotráfico no México, a violência e a crise econômica na Venezuela, o genocídio em Darfur, no Sudão, o radicalismo islâmico na Tunísia e o conflito árabe-israelense. É coautor dos livros “Correspondente de Guerra” (Editora Contexto, com André Liohn) e “No Teto do Mundo” (Editora Leya, com Rodrigo Raineri).

Sobre o Blog

“O que mantém a humanidade viva?”, perguntava-se o dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Essa é a pergunta que motiva esse blog a desembaraçar o noticiário internacional – e o nacional, também, quando for pertinente – e a lançar luz sobre fatos e conexões que não receberam a atenção devida. Esse é um blog que quer surpreender, escrito por alguém que gosta de ser surpreendido.