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Diogo Schelp

Jair Bolsonaro, o coronavírus e o dilema do trem descontrolado

Diogo Schelp

25/03/2020 12h56

Bolsonaro

Jair Bolsonaro (Foto: Adriano Machado)

Em seu pronunciamento na TV na noite desta terça-feira (24) e em declarações desta quarta-feira (25), o presidente Jair Bolsonaro escancarou sua estratégia para lidar com a crise provocada pela pandemia do novo coronavírus. Para Bolsonaro, o problema se coloca em termos semelhantes a um conhecido dilema ético, o do trem descontrolado.

Esse dilema consiste na seguinte situação: um trem sem freios está prestes a atropelar cinco pessoas deitadas no trilho à frente, na rota da locomotiva. Ciente do que está prestes a acontecer, um funcionário da ferrovia tem a opção de puxar uma alavanca capaz de desviar o trem do seu rumo, direcionando-o por uma linha que provocaria a morte de apenas um indivíduo. A questão ética que se coloca é: deixar o trem seguir seu rumo, resultando na morte de cinco pessoas, ou desviá-lo e provocar a morte de uma pessoa?

O problema que se coloca diante do presidente é uma variante cercada de incertezas desse dilema clássico.

No caso de Bolsonaro, o trem é a pandemia do coronavírus. Não fazer nada e deixá-lo seguir seu curso, abdicando de promover o isolamento social da população, pode levar à morte de milhares de pessoas pelo COVID-19. Tomar uma atitude, puxando a "alavanca" e mandando as pessoas ficarem em casa, porém, também tem potencial para afetar negativamente milhares de brasileiros, na forma de desemprego e aumento da pobreza.

Bolsonaro não quer puxar a alavanca do isolamento geral da população porque, na sua visão, deixar o trem desgovernado do coronavírus seguir seu rumo só vai matar velhinhos. O presidente inventou o darwinismo viral: idosos sem vigor físico como ele podem morrer, mesmo, fazer o quê. "No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus não precisaria me preocupar, nada sentiria ou seria quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho", disse Bolsonaro.

Sua opção ética é clara: ele já escolheu quem ele prefere que seja atropelado pela pandemia.

Mas Bolsonaro não quer assumir a responsabilidade por essa decisão. Por isso, joga a batata quente para a mão da imprensa e dos governadores dos estados. Em seu pronunciamento, ele disse que os meios de comunicação usaram os dados da epidemia na Itália, com grande número de mortes, para espalhar o pânico na população brasileira, fazendo com que "uma grande histeria se espalhasse pelo país". Disse, também, que "algumas poucas autoridades estaduais e municipais devem abandonar o conceito de terra arrasada, a proibição de transportes, o fechamento de comércio e o confinamento em massa".

Ou seja, Bolsonaro prepara o terreno para que, quando a pandemia chegar ao fim, possa dizer que, enquanto tinha que optar entre acionar a alavanca ou não, os jornalistas estavam do outro lado do trilho gritando, pressionando-o, para que a puxasse, enquanto os governadores tratavam de arrancá-la da sua mão para desviar o trem descontrolado do seu rumo.

A estratégia de Bolsonaro, portanto, é de se eximir de responsabilidade. Ele não quer ser responsável nem pelas mortes causadas pelo novo coronavírus, nem pelo desastre econômico e social provocado pela paralisação do país.

Se as medidas de isolamento social derem certo e a mortalidade pelo coronavírus for baixa, ele vai dizer que tinha razão ao afirmar que se tratava de uma histeria.

Se não derem certo, ele vai alegar, no futuro: "Viram só? A economia foi para o buraco por causa do confinamento, mas muita gente morreu do mesmo jeito. Se tivessem feito o que eu falei, teríamos todas essas mortes, mas ao menos a economia estaria bem." E ele vai afirmar que a culpa foi da imprensa e dos governadores que puxaram a alavanca à sua revelia.

Bolsonaro parece acreditar que esse discurso funciona porque ninguém vai poder dizer, exatamente, quantas pessoas foram salvas pelas medidas de contenção. O estrago que a pandemia pode causar no Brasil só seria conhecido, em toda a sua extensão, se nada fosse feito. Se a alavanca não fosse puxada. Mas aí seria tarde demais.

O presidente, portanto, demonstra mais uma vez que aposta no caos para garantir a sua sobrevivência política. E é só nisso que ele pensa. Essa é a ética do homem diante da alavanca.

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Sobre o Autor

Diogo Schelp é jornalista com 20 anos de experiência. Foi editor executivo da revista VEJA e redator-chefe da ISTOÉ. Durante 14 anos, dedicou-se principalmente à cobertura e à análise de temas internacionais e de diplomacia. Fez reportagens em quase duas dezenas de países. Entre os assuntos investigados nessas viagens destacam-se o endurecimento do regime de Vladimir Putin, na Rússia, o narcotráfico no México, a violência e a crise econômica na Venezuela, o genocídio em Darfur, no Sudão, o radicalismo islâmico na Tunísia e o conflito árabe-israelense. É coautor dos livros “Correspondente de Guerra” (Editora Contexto, com André Liohn) e “No Teto do Mundo” (Editora Leya, com Rodrigo Raineri).

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“O que mantém a humanidade viva?”, perguntava-se o dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Essa é a pergunta que motiva esse blog a desembaraçar o noticiário internacional – e o nacional, também, quando for pertinente – e a lançar luz sobre fatos e conexões que não receberam a atenção devida. Esse é um blog que quer surpreender, escrito por alguém que gosta de ser surpreendido.