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Ele foi preso por denunciar o tráfico de virgens. Seu 'crime': fake news

Diogo Schelp

02/06/2019 12h15

O intérprete Rath Rott Mony é levado a tribunal em Phnom Penh, no Camboja, na quinta-feira 30. (Samrang Pring/Reuters)

A expressão "fake news" é o novo fascismo.

Fake news, literalmente "notícias falsas", são inverdades ou meias verdades produzidas e difundidas propositalmente como se fossem conteúdo jornalístico sério. O jornalismo profissional eventualmente comete erros, mas não divulga notícias falsas intencionalmente.

Assim como ocorre com "fascismo", o termo "fake news" é constantemente usado para classificar informações que não são fake news. Se uma história desagrada ou atrapalha os interesses de um indivíduo ou de um grupo, logo aparecem as acusações de que não passam de fake news. Isso se tornou tão recorrente que, geralmente, quem mais acusa jornalistas de produzirem fake news acaba sendo justamente quem tem mais tendência a difundir notícias falsas. As falsas acusações de fake news são a mais nova máscara dos mentirosos e dos tiranos e a desculpa moderna para a censura.

Vejamos o caso de Rath Rott Mony, presidente de um sindicato de trabalhadores da construção civil do Camboja, na Ásia. Ele trabalhou como intérprete em um documentário sobre exploração sexual no Camboja produzido pelo RT (Russia Today), um canal de TV russo. Intitulado "Minha mãe me vendeu", a produção mostra o depoimento de quatro meninas que venderam — ou foram obrigadas por suas mães a vender — a virgindade para aliviar a pobreza de suas famílias.

Uma das histórias mais fortes da produção é contada por meio do depoimento de uma mãe e de sua filha. Os rostos e nomes de ambas aparecem na reportagem. A mãe conta, diante da câmera, que vendeu a virgindade da filha por 1.000 dólares. A menina está ao lado dela, vestida com uniforme escolar, e confirma com a cabeça que o que a mãe está dizendo é verdade. A voz de um homem que não aparece na imagem pergunta diretamente à filha em khmer, a língua oficial do Camboja: "É verdade isso? Ela te vendeu?"

"Sim, é verdade", diz a menina. "Ela me obrigou a fazer isso."

A voz por trás da câmara é de Rath Rott Mony, que havia sido contratado justamente para isso, para conduzir as entrevistas em khmer, transmitindo as perguntas que a equipe russa fazia e traduzindo as respostas.

O Camboja tem um problema sério de tráfico humano, reconhecido por entidades como a ONU, o Departamento de Estado americano e diversas ongs especializadas no assunto. Ainda assim, em outubro do ano passado, depois que o documentário foi divulgado no YouTube, as autoridades do país trataram de desqualificar as denúncias e escolheram Mony como bode expiatório, já que seria impossível punir a equipe russa.

A mãe e a filha entrevistadas no documentário foram chamadas para depor e, diante dos policiais, mudaram a versão dos fatos. Disseram que não houve venda de virgindade alguma e que elas tinham sido pagas para contar a história diante das câmaras.

Alertado, Mony fugiu para a Tailândia com o intuito de pedir asilo na Holanda. Mas acabou sendo preso pela polícia tailandesa e deportado em dezembro do ano passado para o Camboja.

No último dia 30, ele foi levado a um tribunal para o início do seu julgamento. Seu suposto crime: espalhar fake news, prejudicando a imagem do país.

Segundo o Comitê para a Proteção de Jornalistas (CPJ), uma ong de atuação internacional com sede em Nova York, nos Estados Unidos, quem prejudica a imagem do país é o próprio governo do Camboja, comandado pelo mesmo primeiro-ministro há mais de 30 anos. O país é uma monarquia constitucional, com um sistema político que já teve traços democráticos e uma imprensa relativamente independente em um passado recente, mas que tem se tornado cada vez mais autoritário e intolerante à atuação da oposição.

Não se trata aqui de defender os critérios éticos que nortearam a reportagem russa. Em temas como o que estava sendo investigado, recomenda-se, por exemplo, não revelar a identidade das vítimas. Além disso, o diretor russo do documentário admitiu ter doado 200 dólares à mãe que vendeu a virgindade da filha para que ela comprasse uma máquina de lavar roupa (ela trabalha como lavadeira).

Pagar por entrevistas, uma prática descartada por qualquer veículo de comunicação sério no Brasil, é ruim justamente porque coloca em xeque a credibilidade do depoimento. Uma das jovens que venderam a virgindade entrevistadas no documentário, no entanto, confirmou o que disse a Mony e aos jornalistas russos e afirmou que as histórias retratadas no filme são verdadeiras.

Se condenado, Mony pode pegar até três anos de cadeia.

A proliferação de fake news não é uma ameaça apenas pelo ambiente de desinformação e ignorância que ela cria. É também um risco à democracia porque dá a líderes autoritários a possibilidade de direcionar a paranoia das notícias falsas contra profissionais que apenas buscam a verdade.

(Versão atualizada às 21h09 com correções de digitação.)

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Sobre o Autor

Diogo Schelp é jornalista com 20 anos de experiência. Foi editor executivo da revista VEJA e redator-chefe da ISTOÉ. Durante 14 anos, dedicou-se principalmente à cobertura e à análise de temas internacionais e de diplomacia. Fez reportagens em quase duas dezenas de países. Entre os assuntos investigados nessas viagens destacam-se o endurecimento do regime de Vladimir Putin, na Rússia, o narcotráfico no México, a violência e a crise econômica na Venezuela, o genocídio em Darfur, no Sudão, o radicalismo islâmico na Tunísia e o conflito árabe-israelense. É coautor dos livros “Correspondente de Guerra” (Editora Contexto, com André Liohn) e “No Teto do Mundo” (Editora Leya, com Rodrigo Raineri).

Sobre o Blog

“O que mantém a humanidade viva?”, perguntava-se o dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Essa é a pergunta que motiva esse blog a desembaraçar o noticiário internacional – e o nacional, também, quando for pertinente – e a lançar luz sobre fatos e conexões que não receberam a atenção devida. Esse é um blog que quer surpreender, escrito por alguém que gosta de ser surpreendido.


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