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Bolsonaro insiste em culpar a imprensa, na falta de novos bodes expiatórios

Diogo Schelp

07/10/2019 16h04

O presidente Jair Bolsonaro (Foto: Igo Estrela/Estadão Conteúdo)

Em 2011, o venezuelano Hugo Chávez levantou uma teoria surpreendente para o fato de vários presidentes latino-americanos do eixo bolivariano, inclusive ele próprio (além de Dilma Rousseff, Lula, Fernando Lugo, do Paraguai, e Cristina Kirchner, da Argentina), terem sido diagnosticados com algum tipo de câncer em anos anteriores. Seria muito estranho se os Estados Unidos tivessem desenvolvido uma tecnologia para provocar câncer nas pessoas?, questionou Chávez. "Não sei, só deixo a reflexão."

Na lógica do falecido presidente da Venezuela, se é possível identificar um padrão em determinado fenômeno, então deve haver alguma força sinistra por trás deles, conspirando para atingir um objetivo.

De maneira semelhante, o presidente Jair Bolsonaro concluiu que, se a imprensa publica notícias negativas sobre ele ou sobre o governo com certa regularidade, a única explicação plausível é a de que há um complô para derrubá-lo.

Trata-se de um traço comum a todos os governos populistas: eles tendem a atribuir erros e problemas internos a fatores externos, nunca aos próprios atos ou a circunstâncias aleatórias. Isso ocorre porque líderes populistas dependem de uma imagem pública que exacerba uma característica comum à maioria dos seres humanos, a de se considerar melhor do que realmente são. Para manter essa imagem, é preciso encontrar culpados — em outras palavras, bodes expiatórios.

Os bodes expiatórios, em seu conceito bíblico, eram animais levados ao sacrifício e ao banimento para pagar, simbolicamente, pelos pecados da comunidade.

Na política atual, o bode expiatório pode ser qualquer ente — um país, um grupo de pessoas (imigrantes, ambientalistas ou índios, por exemplo) ou instituições (veículos de imprensa, ongs, etc) — sobre o qual se pode despejar a culpa por algo que deu errado.

Solitário, identificável e sem defensores

Um bom bode expiatório deve preencher três requisitos.

Primeiro, deve ser capaz de absorver sozinho a responsabilidade por algo que, na realidade, ocorre por outros fatores. Assim, em vez de tentar explicar por que as investigações sobre o laranjal do PSL em Minas Gerais apontam para a existência de caixa 2 em sua campanha presidencial, o que exigiria a identificação de diversos culpados, Bolsonaro opta por culpar a imprensa por fazer seu trabalho de noticiar os fatos.

Segundo, todo bode expiatório deve ser um alvo de fácil identificação. "Imprensa", apesar de ser um termo amplo que pode incluir veículos com linhas editoriais opostas, é uma velha conhecida de todo mundo. Todos os cidadãos entram em contato com a imprensa — ou com o que consideram ser imprensa — em algum momento de seu dia.

Uma vez identificado um bom bode expiatório, é mais eficiente concentrar nele a culpa por tudo, em vez de dividir a atenção da população em diferentes bodes expiatórios. Por isso, Bolsonaro insiste em ter a imprensa como seu malvado favorito de fácil identificação.

Terceiro, o bode expiatório perfeito é aquele que encontrará poucos defensores. E, se aparecerem, que possam se tornar facilmente alvo de desconfiança geral. Afinal, nada melhor para confirmar uma teoria da conspiração do que o fato de que há alguém tentando negá-la.

"O que mais me surpreende são os patrocinadores que anunciam nesse jornaleco chamado de Folha de S.Paulo", disse Bolsonaro no domingo (6), em reação à reportagem do jornal sobre o esquema de candidatas laranjas de seu partido em Minas Gerais. Ou seja, o presidente tenta constranger os anunciantes valendo-se da lógica de que quem não acredita em suas alegações de que é vítima de um complô só pode estar fazendo parte do suposto complô.

Diante disso, não há outra postura possível que não seja a de seguir serenamente noticiando os fatos.

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Sobre o Autor

Diogo Schelp é jornalista com 20 anos de experiência. Foi editor executivo da revista VEJA e redator-chefe da ISTOÉ. Durante 14 anos, dedicou-se principalmente à cobertura e à análise de temas internacionais e de diplomacia. Fez reportagens em quase duas dezenas de países. Entre os assuntos investigados nessas viagens destacam-se o endurecimento do regime de Vladimir Putin, na Rússia, o narcotráfico no México, a violência e a crise econômica na Venezuela, o genocídio em Darfur, no Sudão, o radicalismo islâmico na Tunísia e o conflito árabe-israelense. É coautor dos livros “Correspondente de Guerra” (Editora Contexto, com André Liohn) e “No Teto do Mundo” (Editora Leya, com Rodrigo Raineri).

Sobre o Blog

“O que mantém a humanidade viva?”, perguntava-se o dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Essa é a pergunta que motiva esse blog a desembaraçar o noticiário internacional – e o nacional, também, quando for pertinente – e a lançar luz sobre fatos e conexões que não receberam a atenção devida. Esse é um blog que quer surpreender, escrito por alguém que gosta de ser surpreendido.


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