Diogo Schelp http://diogoschelp.blogosfera.uol.com.br Esse é um blog que quer surpreender, escrito por alguém que gosta de ser surpreendido. Tue, 31 Mar 2020 20:19:06 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Trump aprendeu que o vírus não respeita diferenças políticas. E Bolsonaro? http://diogoschelp.blogosfera.uol.com.br/2020/03/31/trump-aprendeu-que-o-virus-nao-respeita-diferencas-politicas-e-bolsonaro/ http://diogoschelp.blogosfera.uol.com.br/2020/03/31/trump-aprendeu-que-o-virus-nao-respeita-diferencas-politicas-e-bolsonaro/#respond Tue, 31 Mar 2020 20:04:38 +0000 http://diogoschelp.blogosfera.uol.com.br/?p=2464 Policial Nova York

Policial faz patrulha usando máscara cirúrgica em Nova York, no dia 30 de março. Cerca de 800 policiais da cidade americana estão afastados com Covid-19 (Foto: Andrew Kelly/Reuters)

O presidente Jair Bolsonaro, na contramão do que pensam os principais integrantes do seu próprio governo, aposta na hipótese de que o Brasil não será (ou não está sendo, a depender do grau de subnotificação) tão afetado pela pandemia do novo coronavírus quanto outros países.

Essa postura tem quatro efeitos diversos em sua popularidade. O primeiro, e mais evidente, é que radicaliza o repúdio de quem já não apoiava o presidente. O segundo é que fortalece o respaldo de seus apoiadores mais fieis. O terceiro efeito é o de fazer com que uma parte das pessoas que mantinham seu voto de confiança em seu governo agora optem pelo rompimento, por entenderem a seriedade da Covid-19. Há, porém, um quarto efeito: o de atrair, para o núcleo duro do bolsonarismo, brasileiros que apoiavam disfarçadamente o presidente, mas que compartilham de tal forma de seu ceticismo em relação à pandemia que agora se juntam a ele abertamente. Resumindo em um número: a avaliação ótima/boa do governo Bolsonaro até caiu, mas não fica abaixo dos 30%.

Ou seja, entre perdas e ganhos, o piso de sua popularidade se mantém.

Em algum momento nas próximas semanas, porém, a depender do ritmo de alastramento do coronavírus no país, os bolsonaristas que minimizam o perigo da doença vão descobrir que o vírus não respeita linhas ideológicas. Ele infecta todos por igual. Exatamente como aconteceu nos Estados Unidos.

Uma pesquisa ABC/Ipsos feita entre os cidadãos americanos e divulgada na semana passada mostra que apenas 12% dos democratas não estão preocupados com a Covid-19, enquanto 37% dos republicanos pensam o mesmo. Um detalhe importante é que, entre os republicanos, o ceticismo era bem maior há duas semanas, quando 47% diziam não estar preocupados com a doença.

Ou seja, com o aumento exponencial no número de casos de infectados e de mortos pela doença, boa parte dos americanos que se identificam com o partido do presidente Donald Trump passaram a reconsiderar suas percepções a respeito da Covid-19. Afinal, o vírus não contamina apenas quem acredita nele.

Simultaneamente, ao longo das últimas duas semanas, a posição de Trump também mudou. Se antes ele minimizava a ameaça da pandemia, nos últimos dias ele passou a defender medidas mais duras para contê-la, estendendo a recomendação de quarentena até 30 de abril.

A mudança de postura de Trump teve um reflexo imediato na sua popularidade, que chegou ao seu ponto máximo na última sexta-feira (27): 47%, na média das principais pesquisas de opinião. A aprovação de sua maneira de lidar com a pandemia aumentar ao mesmo tempo em que aumentou a aprovação geral de seu governo.

Ou seja, só quando a epidemia começou a produzir imagens de caos nos hospitais e estatísticas alarmantes, com 1.500 mortes só na cidade de Nova York, é que a turrice ideológica começou a dar lugar à sensatez e à consciência de uma ameaça comum.

Bolsonaro aposta na hipótese, sem comprovação científica, de que o calor vai evitar que se repita no Brasil o que está acontecendo nos Estados Unidos. Quem está com ele confia no palpite alheio. A que custo?

O dramaturgo Nelson Rodrigues, em frase que ele atribuiu a Otto Lara Resende, escreveu que “o mineiro só é solidário no câncer”. A solidariedade entre os brasileiros só vai superar as diferenças ideológicas quando ficar claro que o vírus não as respeita. Ou seja, quando for tarde demais.

 

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Bolsonaro sonha com estado de sítio para ampliar poderes, diz Marina Silva http://diogoschelp.blogosfera.uol.com.br/2020/03/28/bolsonaro-sonha-estado-de-sitio-ampliar-poderes-marina-silva/ http://diogoschelp.blogosfera.uol.com.br/2020/03/28/bolsonaro-sonha-estado-de-sitio-ampliar-poderes-marina-silva/#respond Sat, 28 Mar 2020 07:00:29 +0000 http://diogoschelp.blogosfera.uol.com.br/?p=2453 Marina Silva

Marina Silva (Foto: Fábio Braga/Folhapress)

A ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva (Rede) está em isolamento em sua casa, em Brasília, desde o dia 1º de março, quando pegou uma forte gripe. “Como eu não sabia o que era, já fiquei em isolamento, antecipadamente”, conta ela. Na realidade, mesmo antes, em janeiro, quando as surgiram as primeiras notícias do surto de coronavírus, ela cancelou todas as viagens, cinco no total, que tinha marcadas. Uma delas era para participar de evento do IPCC (Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas) que estava marcado para acontecer no México. Um dos organizadores, o brasileiro Sérgio Trindade, morreu pela Covid-19.

Diz Marina Silva: “Estou fazendo o que precisa ser feito e o que o mundo está fazendo. Quem não tem respeito pela vida recomenda o contrário. Além disso, sou de um grupo de ultrarrisco. Para quem já teve cinco malárias, três hepatites, leishmaniose, dengue duas vezes, superalérgica, 62 anos… meu Deus.”

Do isolamento social, Marina Silva acompanha com indignação a maneira como o presidente Jair Bolsonaro está lidando com a pandemia e vem expressando seu sentimento em vídeos e comentários no Twitter. Nesta entrevista ao blog, ela comenta as decisões do governo, as tentativas de pedir o impeachment do presidente e dá um conselho ao ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta:

Em pronunciamentos e declarações esta semana, o presidente Jair Bolsonaro criticou as medidas de isolamento adotadas pelos governadores e acusou a imprensa de estar espalhando o pânico em relação ao coronavírus. Como a senhora avalia a postura do presidente frente à pandemia?

Diante de uma crise com essa gravidade, com todos os líderes do mundo recomendando o isolamento social de cerca de 3 bilhões de seres humanos, o presidente da república prefere fazer uma polarização entre vida e economia. É uma completa falta de postura. Até o mentor-mor dele, o presidente americano Donald Trump, faz um discurso, mas na prática aconselha as pessoas a ficar em casa. Em uma demonstração concreta de que ele não confia em quem segue à risca o próprio discurso político que ele faz é que o governo dos EstadosUnidos está chamando o pessoal da embaixada americana de volta.

Além disso, Trump está adotando medidas concretas para resolver o problema da economia. O volume de dinheiro que foi injetado para socorrer empresas e o cheque direto na conta das pessoas é, na devida proporção, o que o Bolsonaro deveria estar fazendo no Brasil, agora, em vez de ficar debatendo assuntos que nenhum governante tem autoridade técnica para debater. Quem tem que fazer isso são os cientistas, os sanitaristas, os médicos, os pesquisadores, as pessoas que entendem de saúde pública. Trump joga para a galera, mas, na prática, seu país está tendo que confinar as pessoas e socorrer empresas e pessoas.

Bolsonaro está prestando um desserviço à população brasileira, jogando contra a imprensa, que, neste momento, está sendo um dos canais por onde mais tem fluído a informação para a sociedade, e tentando bombardear o trabalho daqueles com os quais deveria estar se mobilizando para agir integralmente: os governadores e os prefeitos. O que o presidente está fazendo é apostar no caos. Ele quer esconder a sua incompetência. Eu sinto que ele sonha em criar uma comoção social para decretar o estado de sítio, para ter poder sobre tudo e sobre todos. Mas quem não tem autoridade ética e moral não tem como ter poder sobre tudo e sobre todos.

A senhora concorda com as tentativas de iniciar um processo impeachment do presidente?

Esse debate está sendo feito por alguns segmentos da sociedade, mas acho que, neste momento, o que tem que ser feito em caráter emergencial é colocar o presidente no seu devido lugar: em isolamento político. Os governadores têm que continuar o seu trabalho, as autoridades sanitárias têm que continuar fazendo o que está sendo feito, a imprensa tem que continuar informando e Bolsonaro tem que ficar em isolamento político.

As consequências que advirão se as orientações dele forem implementadas são inimagináveis. Como disse o economista Maílson da Nóbrega, o presidente deveria estar contando cadáveres em vez de contar desempregados.

O que está sendo feito agora tem que ser medido sem as paixões da disputa política. A vida não é uma disputa entre a esquerda, a direita ou o que seja. A vida é uma busca política de todos que têm respeito por ela.

O debate do impeachment está sendo feito. Bolsonaro se descredenciou para o essencial do essencial. Uma coisa é não ter competência para cuidar dos empregos, das questões da desigualdade social, outra é não ter competência para enxergar o que há de mais essencial que é a proteção da vida. Ao transformar isso em disputa política, ele revogou o mínimo que tinha como credencial para ser o presidente na prática.

Bolsonaro decretou que templos religiosos prestam serviços essenciais e não devem ser fechados durante a pandemia. Como evangélica, a senhora também considera que é imprescindível manter as igrejas abertas para exercer a religião?

Nós temos fé, mas não podemos ter uma fé vaidosa. Isso quem nos ensinou foi Jesus. Quando ele teve a tentação no deserto, o inimigo tentou Jesus com muitas coisas. A primeira delas foi pegando a sua fragilidade, pois ele estava há 40 dias com fome, e pediu que ele transformasse as pedras em pães. Ele tinha poder para fazer isso. Mas Deus respeita a natureza que ele mesmo criou. Então ele respondeu: nem só de pão vive um homem, e não cairei na tentação de me exibir fazendo o milagre de transformar pedras em pão.

Mas teve também outra tentação, que foi a de querer revogar a gravidade. O inimigo mandou que Jesus se atirasse do pináculo do templo porque, no Salmo 91, diz-se que os anjos fariam algo a respeito para que ele não tropessasse em nenhuma pedra. E o inimigo usou isso até mesmo com fundamento bíblico para que Jesus se jogasse do pináculo. Ele disse olha: também está escrito que não se deve tentar a Deus. Uma fé exibida tenta a Deus. Eu não posso me atirar de um prédio de dez andares e exigir que os anjos me amparem lá embaixo.

Da mesma forma, não podemos dizer: “Olha, pessoas que estão sendo contaminadas, eu tenho um Deus que me protege e não protege vocês.” Nesse momento, todos estamos vulneráveis e a melhor forma de adorar a Deus é ajudando a preservar a vida. Cuidando das pessoas para que elas não adoeçam. Cuidando dos seus países para que eles não saiam dessa crise piores do que estavam. Está correta a atitude de muitos pastores de fazer acompanhamento online, de fazer seus cultos pela internet, de orientar suas ovelhas para que elas não se atirem do precipício.

Como a senhora avalia a atuação do Congresso Nacional nessa crise?

Os presidentes da Câmara e do Senado têm dado uma contribuição. As medidas essenciais, com os ajustes necessários, têm sido aprovadas. Acho que eles conseguiram uma solução que dialoga com a necessidade do isolamento social, mas mantendo suas votações. E agora tem que debater o que é mais importante: enquanto as autoridades médicas e sanitárias nos orientam o que fazer para cuidar da nossa saúde, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário têm que dar base de sustentação, seja do ponto de vista legal seja dos recursos financeiros, para que os investimentos sejam feitos em produtos e materiais que dêem suporte para a comunidade médica e para os hospitais. Para mobilizar os recursos técnicos e equipamentos para socorrer as pessoas e, ao mesmo tempo, tentar minorar o sofrimento de quem vai ser privado de seus ganhos e evitar a quebradeira das empresas.

Não por acaso, os Estados Unidos e a Alemanha estão fazendo uma injeção de recursos astronômica tirada dos tesouros desses países para socorrer grandes e médias empresas e pessoas: 2 trilhões estão sendo injetados na economia americana, que vai contar com um cheque de 2.000 dólares na conta das pessoas. O Brasil tem em torno de 300 bilhões de dólares em reservas cambiais, e o que exige o FMI é em torno de 150 bilhões. Nós temos o dobro disso. Uma parte disso tem que ser usada para manter a demanda das pessoas. Elas vão precisar continuar se alimentando, comprando remédio, fazendo aquilo que mantém a vida. Ao mesmo tempo, é preciso dar o mínimo para as empresas poderem sobreviver.

O mundo inteiro está parando. A Índia está parando, a China parou, a Alemanha parou, a França parou. É uma insanidade política e social dar uma ordem contrária ao que o mundo está fazendo para proteger a vida das pessoas.

E a atuação dos governadores?

Os governadores estão surpreendendo positivamente em muitos aspectos, porque muitos estados estão endividados, porque a gente sabe da situação de dificuldade que eles enfrentam — com raras exceções, como é o caso de um estado rico como São Paulo. E, num momento de crise como esse, os governadores, sem a participação do presidente da República, estão se coordenando. Criaram um colegiado e estão se unindo para tomar medidas.

O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, tem precisado equilibrar as decisões técnicas do ministério com as opiniões do presidente e aos poucos vai se queimando junto à opinião pública. O Brasil tem a perder mais se ele sair do cargo ou se ele continuar cedendo ao discurso do presidente?

Para não cometer nenhum tipo de injustiça, ele vinha tendo uma atuação boa e estava orientando o Brasil em consonância com a Organização Mundial de Saúde (OMS). Inclusive os governadores estavam se sentindo respaldados para tomar as medidas que vinham tomando, de promover o isolamento social como única medida capaz de prevenir o colapso. Quem não a adotou entrou em colapso, como ocorreu na Itália e na Espanha.

Mas eu acho que quando ele foi desautorizado em cadeia nacional pelo presidente da República, sem sequer ter participado da formulação da fala sobre a pandemia, isso foi algo muito grave. Na minha opinião, o que o ministro da Saúde tinha que ter feito é o mesmo que Ricardo Galvão (ex-diretor do Inpe que foi demitido por ordem de Bolsonaro no ano passado): dizer que “as medidas são essas, eu não vou me demitir, vou continuar implementando as recomendações da OMS e claro, o presidente tem a caneta, ele faz o que achar melhor”.

Mas não se adaptar ao presidente. Se for para Mandetta se adaptar à estratégia do presidente, é claro que isso não fará bem ao Brasil. Ele tem que manter a coerência de médico e de quem estava dando uma orientação que estava sendo seguida e que com certeza contribuiria para evitar o caos.

O que está sendo mostrado aí pelas projeções é Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília consolidando-se como os três epicentros da crise, num país como o nosso que não conta com os recursos necessários, que tem comunidades fragilizadas. Imagina aqui no entorno de Brasília, todas essas regiões pobres, com um sistema de saúde que já se vê colapsado antes de qualquer crise, com graves problemas de atendimento.

Então o ministro Mandetta poderia manter o seu cronograma de trabalho. E deixar para o presidente o ônus das medidas que ele quer tomar ao arrepio de tudo o que está acontecendo no mundo. Ele não pode encolher para ficar do tamanho da irresponsabilidade de Bolsonaro.

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Cientista que previu pandemia em série do Netflix contesta Bolsonaro http://diogoschelp.blogosfera.uol.com.br/2020/03/27/dennis-carroll-pandemia-cientista-de-serie-do-netflix/ http://diogoschelp.blogosfera.uol.com.br/2020/03/27/dennis-carroll-pandemia-cientista-de-serie-do-netflix/#respond Fri, 27 Mar 2020 07:10:56 +0000 http://diogoschelp.blogosfera.uol.com.br/?p=2434 Pandemia

O cientista Dennis Carroll em gravação da série “Pandemia”, do Netflix (Foto: Arquivo Pessoal/Dennis Carroll)

O americano Dennis Carroll é um caçador de vírus pandêmicos. Nos últimos 30 anos, supervisionou a divisão de doenças infecciosas da Agência de Desenvolvimento Internacional dos Estados Unidos (USAID) e, há quinze anos, criou na mesma agência o Programa de Ameaças de Doenças Infecciosas, dedicado a descobrir as zoonoses com potencial para se tornar perigosas pandemias — como a do coronavírus que está fazendo o mundo parar. A verba para o programa foi cancelado pelo presidente americano Donald Trump no ano passado.

Carroll, criou, então, o Global Virome Project, uma parceria global para documentar vírus circulando entre animais selvagem que provavelmente vão infectar pessoas no futuro. “Ou seja, meu objetivo é encontrar os vírus antes que eles nos encontrem”, diz Carroll.

O cientista é um dos protagonistas da série documental “Pandemia”, que estreou em janeiro na plataforma de streaming Netflix. Ali, ele e outros cientistas preveem que uma pandemia devastadora estava prestes a acontecer. O timing não podia ser mais perfeito e Carroll agora é tratado como o Nostradamus do coronavírus.

Ele concedeu a seguinte entrevista a este blog por telefone de dentro do barco onde mora, em uma marina fluvial em Washington D.C., capital dos Estados Unidos:

O senhor alertou que uma pandemia como a que estamos enfrentando agora era iminente. Há, no entanto, algo nessa crise da Covid-19 que lhe surpreende por algum motivo?

De fato, para mim não há nada de surpreendente no fato de esse surto estar ocorrendo. O que me deixa alarmado é que esta pandemia ocorre em um momento da história em que as parcerias globais que antes existiam foram fragmentadas ou destruídas pela ascensão do nacionalismo, tanto no meu país como em outros ao redor do mundo. O que me surpreende nessa pandemia, portanto, é como o mundo está reagindo, não com cooperação entre as nações, mas um país de cada vez, esquecendo-se das parcerias que foram tão centrais em coordenar e enfrentar crises globais no passado.

O que me surpreende nessa pandemia é a falta de coordenação entre as nações”

Esse é o primeiro evento de alcance global em muitos anos, por exemplo, em que não houve uma discussão sobre como a comunidade internacional deve ajudar as pessoas nos países mais vulneráveis e que correm mais risco de sofrer as piores consequências. Durante a epidemia de ebola na África Ocidental, em 2014, e durante a pandemia de H1N1, em 2009, por exemplo, houve cooperação global para atender as necessidades das populações nas regiões mais vulneráveis. Agora o mundo está em silêncio. Isso é o que mais me surpreende.

Sobre o novo coronavírus em si, há alguma particularidade que merece ser destacada?

De um ponto de vista epidemiológico é surpreendente que crianças pequenas não sejam tão vulneráveis à doença – até agora. Mas a maneira como esse coronavírus se espalha e as consequências clínicas da infecção são previsíveis e condizentes com o comportamento esperado de vírus respiratórios. 

Quando o surto do novo coronavírus começou, o senhor previa que teria as consequências que vemos hoje?

Quando houve os primeiros relatos do surto na China, em dezembro e início de janeiro, era difícil prever a relevância que essa epidemia teria. Até agora, o seu impacto é maior do que eu imaginava no começo. Por outro lado, percebe-se que sua magnitude tem sido desigual ao redor do mundo em termos de letalidade.

No começo da epidemia na China, a taxa de letalidade (proporção de mortos pela doença em relação ao total de infectados) era relativamente alta, entre 3% a 5%. Mas com o passar do tempo caiu para menos de 1%. Na Itália, tivemos uma letalidade de 8%, nos Estados Unidos em torno de 2%-3%, mas na Alemanha, apenas 0,4%. A variação é muito grande.

Qual é a razão disso?

Parte da explicação pode estar no perfil das populações que estão sendo afetadas. A Itália tem uma das populações mais idosas da Europa. Quando tudo isso acabar e pudermos olhar para os dados em retrospecto, vai ser possível analisar também o impacto da doença entre os fumantes, que talvez estejam no grupo de maior risco. As diferenças de letalidade, portanto, podem ter um componente demográfico, mas também de estilo de vida, como o hábito de fumar.

Os alemães foram muito eficientes em fazer testes em larga escala”

A Alemanha é um caso interessante. Os alemães foram muito eficientes em fazer testes em larga escala para detecção precoce da doença e com isso conseguiram dar uma resposta muito mais rápida. Esse exemplo nos mostra o benefício de investir em diagnóstico para prevenir o impacto clínico da doença.

Os países, como Brasil, que só conseguem fazer testes em pacientes graves, portanto, terão uma capacidade de resposta menos eficiente para evitar a disseminação da doença…

Exatamente. Além disso, quando não há equipamentos suficientes para dar suporte de vida para quem estiver tendo problemas respiratórios, tem-se a receita para uma alta letalidade.

O coronavírus é pior que uma “gripezinha”? Por quê?

Sim. Contra a gripe sazonal, as pessoas têm, em maior ou menor grau, uma imunidade natural. Todos os anos aparece um influenza, o vírus da gripe, que é uma variação de um influenza anterior que já conhecemos, pois está circulando entre a população por algum tempo. O H1N1 e o H3N2, por exemplo, são dois exemplos de vírus influenza da gripe sazonal que, com pequenas mutações, retornam a cada ano. A população já tem alguma proteção contra eles, porque já entrou em contato com esses vírus em temporadas anteriores.

O novo coronavírus, porém, nosso corpo não conhece. Nosso sistema imunológico é ingênuo, ele não tem nenhuma memória desse vírus. Por isso, quando somos infectados, nosso sistema imunológico não tem capacidade de reagir rapidamente, como ocorreria se se tratasse de um vírus com o qual já tivemos contato. Sem ter tido contato com um vírus, ainda que com cepas anteriores, não conseguimos ter uma resposta imunológica rápida e nos tornamos vítimas. A questão passa a ser se seremos capazes de sobreviver.

Se esse vírus voltar no futuro, no ano seguinte, por exemplo, as pessoas que já foram infectadas antes podem ter uma memória imunológica dele, que pode ser ativada rapidamente.

Muitas pessoas, no entanto, aparentemente não apresentam nenhum sintoma da Covid-19. Qual pode ser a razão para isso, já que a doença é causada por um vírus novo?

A questão sobre se há ou não pessoas assintomáticas que carregam o vírus continua sendo controversa. O que sabemos é que todo mundo que é infectado em algum momento começa a demonstrar sintomas. A descoberta alarmante, porém, é que um indivíduo infectado tem a habilidade de compartilhar o vírus, contaminando outras pessoas, vários dias antes de ele próprio começar a apresentar sintomas.

Todo mundo que é infectado pelo coronavírus em algum momento começa a demonstrar sintomas”

Então, pode ser que hoje eu esteja infectado, apesar de me sentir bem, e tenho vírus suficientes no meu corpo para começar a infectar outras pessoas. Daqui a três dias, vou começar a sentir esses sintomas. Fica muito difícil saber quando estou contaminando outras pessoas ou não.

Esse vírus tem potencial para ser tão mortal quanto a gripe espanhola, que dizimou entre 50 milhões e 100 milhões de pessoas um século atrás?

Não acredito que este vírus em particular possa causar o número de mortes que a gripe espanhola de 1918-1919 provocou. Por duas razões. Primeiro, porque nós temos muito mais conhecimento sobre os vírus atualmente do que há 100 anos. Nós sabemos como nos proteger contra os vírus, entendemos a importância de lavar as mãos e de manter distância social. Se tomarmos esses cuidados, podemos reduzir drasticamente a transmissão desse vírus. Lembre-se: os vírus não se espalham, nós é que espalhamos o vírus. E por sermos nós que espalhamos o vírus, temos a oportunidade de frear sua transmissão ao adotar esses cuidados. Em 1918, não havia essa compreensão.

Os vírus não se espalham, nós é que espalhamos os vírus”

Segundo, porque metade das mortes associadas à pandemia de 1918 e 1919 deram-se por infecções bacterianas secundárias. O vírus certamente teve um grande papel em boa parte das mortes, mas hoje sabemos que ele enfraquecia o sistema imunológico das pessoas de tal forma que elas se tornavam vulneráveis a infecções bacterianas, e estas mataram tantas pessoas quanto o vírus em si. Hoje em dia temos antibióticos, algo que não havia 100 anos atrás. Essa combinação dupla de infecção viral e infecção de bactérias oportunistas secundárias foi o que levou à alta mortalidade pela pandemia de 1918 e 1919.

Haverá diferença na maneira como a atual pandemia vai afetar países emergentes e países ricos?

Com certeza. Estou muito preocupado com os países cujos sistemas de saúde são mais frágeis. Em 2014, fiz parte da equipe dos Estados Unidos que atuou na epidemia do vírus ebola na África Ocidental. Um dos impactos mais dramáticos do ebola foi o colapso do sistema de saúde.

Na epidemia do ebola, as pessoas paravam de recorrer a hospitais e clínicas, com medo de serem contaminadas”

O colapso do sistema de saúde sob estresse do ebola levou a muito mais mortes por doenças e síndromes que eram tratáveis e passíveis de prevenção do que o próprio vírus. Os profissionais de saúde ficavam doentes e as pessoas paravam de recorrer a hospitais e clínicas, com medo de serem contaminadas pelo ebola.

Minha preocupação é que ocorra uma grande disseminação do vírus do Covid-19 em países onde o sistema de saúde é frágil ou em populações deslocadas, como aquelas que vivem em campos de refugiados no Iêmen ou ao longo das fronteiras com a Síria. Se esse vírus começar a se espalhar de maneira incontrolável por essas regiões, temo que provoque uma mortalidade muito maior do que estamos vendo nos países mais desenvolvidos.

Por que isso não aconteceu ainda? 

O vírus segue as pessoas. O que nós sabemos é que os grandes fluxos de pessoas saindo da China têm como destino aos Estados Unidos e à Europa. Por isso, não é nenhuma surpresa que os primeiros países em que vimos a introdução desse vírus fora da Ásia foram os da Europa e da América do Norte. É possível também que haja menos testes diagnósticos disponíveis na África, por exemplo, e que há uma quantidade desconhecida de vírus circulando nos países da região. Isso ainda é uma incógnita. É algo que precisamos acompanhar.

É uma questão de tempo até que ocorra um aumento do dano causado por essa doença na África e na América Latina”

A disseminação do vírus é desigual ao redor do globo, ela ocorre em diferentes ritmos e velocidade quando passa de uma região para outra. Mas é apenas uma questão de tempo até que a gente veja um aumento significativo do dano causado por essa doença tanto a África quanto em grande parte da América Latina.

Esta semana, em pronunciamento na TV, o presidente Jair Bolsonaro disse que, como nosso país é mais quente e mais jovem do que a Itália, o impacto do coronavírus não será tão dramático por aqui. Ele está certo em pensar assim?

Sobre ser mais quente, não sabemos ainda se há uma sazonalidade potencial associada ao coronavírus. Esse é um dos grandes mistérios que precisamos revelar. Por exemplo, não temos certeza se, conforme fica mais quente aqui na América do Norte, o vírus vai começar a desaparecer apenas por causa da estação do ano.

O que sabemos é que os influenzas têm essa sazonalidade. Então o que se faz é olhar para o padrão de sazonalidade do influenza no Brasil e em outras regiões abaixo da linha do Equador e questionar se, talvez, isso pode ser um bom indicador de como esse novo vírus vai circular. Mas não existe uma resposta para isso, por enquanto.

A segunda parte da observação, sobre o perfil etário da população, é preciso lembrar que o Brasil é um país muito populoso. Se entre 10% e 20% da população tem mais de 60 anos, o tamanho do país indica que há milhões de pessoas vulneráveis a esse vírus. Isso, em si, já é preocupante.

Bolsonaro também disse que, por esses motivos, fechar a economia não faz sentido. Ele está certo? 

A decisão deve ser baseada em evidências. É preciso se certificar de que o Brasil não cometa o erro que os Estados Unidos cometeram: o de não ter uma quantidade suficiente de kits para testes de coronavírus. Com os testes, é possível saber onde o vírus está e em que quantidade. Com base nesse tipo de informação será possível entender a magnitude e a gravidade da epidemia. Não se deve fazer especulações.

O Brasil não pode repetir o erro dos Estados Unidos de não ter kits suficientes de testes para coronavírus”

Decisões como essa não deveriam ser uma questão de posicionamento político. É uma situação em que os cientistas e a comunidade médica precisam ter a capacidade de identificar o começo da epidemia e seguir o movimento do vírus no Brasil. A partir daí, é preciso ter uma boa capacidade diagnóstica para entender se ele está se espalhando ou não e o que é preciso fazer parar essa disseminação.

Bolsonaro também disse que a melhor opção seria fazer um isolamento vertical, ou seja, exigir apenas dos idosos e de cidadãos que pertencem a grupos de risco que fiquem em casa. Isso seria suficiente como medida preventiva?

Mais uma vez, é preciso seguir as evidências. Nos Estados Unidos, 20% dos pacientes com coronavírus que estão precisando de cuidados intensivos têm entre 20 e 40 anos. Ao contrário do que vimos na China, estamos vendo aqui que pessoas jovens, saudáveis, não são tão invencíveis a esse vírus. Elas também podem ter uma alta vulnerabilidade. O Brasil precisa ser muito cuidadoso e monitorar e entender quais são os grupos populacionais afetados, porque a epidemiologia é muito diferente na Europa, nos Estados Unidos e na China.

O senhor acredita que a imprensa está tornando a pandemia pior, espalhando pânico desnecessário?

A imprensa formal está fazendo o que pode para obter a melhor informação. Tem também a imprensa informal, que se vale das redes sociais e se empenha em espalhar desinformação. Esse é o desafio. Garantir que as informações corretas, os fatos, cheguem às pessoas. Há líderes políticos, e isso inclui o presidente americano, que dá pouco valor aos fatos. Ele está constantemente dizendo certas coisas, só porque têm efeito político, mas que não são necessariamente verdade.

É muito perigoso, quando se está no meio de uma pandemia, espalhar desinformação”

É muito perigoso, quando se está no meio de uma pandemia, espalhar desinformação que vai confundir ou exacerbar a condição. Qual é o papel da imprensa quando um governante faz uma afirmação falsa? A imprensa tem a responsabilidade de providenciar um esclarecimento e ter certeza de que as pessoas entendam que o que foi dito não é correto e fornecer a informação correta. Eu acho que a mídia formal está tentando fazer isso.

Como e quando essa pandemia vai acabar?

Se eu tivesse a resposta para isso, eu faria a minha fortuna na bolsa de valores de Nova York. Eu não tenho ideia. Mas se há algo que aprendi com a epidemia de ebola foi que, enquanto os país afetados não se uniam para enfrentá-lo, o vírus esteve fora de controle, espalhando-se facilmente entre a população. Em agosto e em setembro de 2014, muita gente nos três países afetados não acreditava no perigo do vírus. Elas não acreditavam que as ações que estavam sendo propostas teriam algum efeito.

Por causa dessa desunião e dessa descrença, o vírus se disseminou facilmente. Em outubro e novembro daquele ano, criou-se um consenso crescente entre as comunidades afetadas de que o vírus era perigoso e que havia ações que os países tinham que tomar para proteger a si mesmos. Só então a espinha dorsal da epidemia foi quebrada.

É exatamente o que precisa acontecer diante da Covid-19. Temos muitas pessoas nos Estados Unidos que são indiferentes a esse vírus e outras que se empenham nas medidas de distanciamento social e higiene pessoal. Mas, enquanto uma parcela significativa da população seguir ignorando as ações que precisam ser adotadas, o vírus vai continuar se disseminando.

Os brasileiros podem controlar o vírus, mas precisam agir em conjunto: um país, uma voz, uma ação”

Só quando todos na sociedade estiverem agindo de acordo com as práticas de lavar as mãos e de promover o distanciamento social é que vamos derrotar o vírus. Como eu disse, o vírus não se espalha, as pessoas espalham o vírus. E, enquanto as pessoas não pararem de espalhar o vírus pela maneira como elas agem, ele vai continuar circulando entre a população. É possível controlá-lo, os brasileiros podem controlá-lo, mas precisam agir em conjunto: um país, uma voz, uma ação.

É possível que a Covid-19 se torne uma doença sazonal?

Não sabemos se isso vai acontecer ou não. O que sabemos é que este é o sétimo coronavírus de que temos conhecimento que infecta pessoas. Cinco deles são sazonais. Há quatro coronavírus que são associados com a gripe comum, e há o Mers, o vírus da Síndrome Respiratória do Oriente Médio, que circula sempre no final da primavera e início do verão na Península Arábica. O Sars foi erradicado.

Se o novo coronavírus se comportar de maneira semelhante ao Mers ou aos outros quatro vírus relacionados ao frio, então há um grande risco de que se junte aos influenzas e volte todo ano na mesma época do ano. Isso seria um motivo de grande preocupação. Pode ser que não volte, mas não saberemos isso enquanto não tivermos a oportunidade de ver o que acontecerá em novembro, dezembro e janeiro no hemisfério norte.

O que poderia ter sido feito no começo do surto desse coronavírus para evitar que se tornasse uma pandemia?

Quando esse vírus começou a se disseminar entre as pessoas em Wuhan, na China, já era um vírus que tinha as características biológicas, isto é, a habilidade de circular entre as pessoas, de ser transmitido de ser humano para ser humano, com grande eficiência. E é difícil imaginar que assim que emergiu da vida selvagem e contaminou as pessoas poderíamos ter sido bem sucedidos em conter e isolar esse vírus melhor do que se conseguiu fazer na China.

Poderíamos perguntar, porém, se há algo que poderia ter sido feito antes do vírus se tornar um transmissor eficiente entre pessoas? O que sabemos é que esse vírus, antes de dezembro do ano passado, estava circulando entre morcegos na China. E sabemos que existem dez, senão centenas de milhares de outros vírus potencialmente pandêmicos circulando na fauna selvagem na Ásia, na África e no Continente Americano.

Existem dez, senão centenas de milhares de outros vírus pandêmicos circulando entre os animais selvagens”

O que é possível fazer para prevenir qualquer vírus desses de se tornar uma pandemia é, primeiramente, entender onde eles estão circulando na natureza antes de se tornarem infecciosos em pessoas. E ser capaz de monitorar e impedir que contaminem seres humanos. O que precisamos fazer é não apenas monitorar a introdução de um novo vírus entre populações humanas e tentar conter sua disseminação, mas observar a circulação de vírus perigosos na natureza e usar esse conhecimento para impedir futuras contaminações para pessoas. Esse tipo de ação, sim, seria capaz de evitar um pandemia.

O que lideranças globais deveriam fazer a respeito?

Podemos nos unir para desenvolver um sistema global de vigilância para monitorar o que está acontecendo na natureza. Nós temos trabalhado com colegas da China e do Brasil, da Fiocruz, para criar um projeto global chamado Global Virome Project, que envolveria todos os países para documentar juntos tudo o que sabemos sobre os vírus circulando entre os animais selvagens e entender quais deles têm potencial para se tornar epidemias ou pandemias e usar esse conhecimento para prevenir futuros surtos entre as populações humanas. O que os líderes mundiais podem fazer é apoiar essa ideia.

Quantos vírus precisariam ser identificados e monitorados?

O que sabemos com base no trabalho que fizemos ao longo dos últimos 10 anos, em 30 países, incluindo o Brasil, é que há cerca de 1,5 milhão de vírus de diferentes tipos circulando entre animais selvagens. Desse total, estimamos que 600.000 têm o potencial de infectar os seres humanos. É um número muito grande, mas que pode ser identificado e caracterizado com a tecnologia disponível. O Global Virome Project procuraria entender melhor quais desses 600.000 vírus têm o potencial não apenas de infectar mas de causar doenças graves nos seres humanos. Nem todas as infecções resultam em doenças.

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Médico critica estudo que embasou uso de hidroxicloroquina contra COVID-19 http://diogoschelp.blogosfera.uol.com.br/2020/03/26/medico-critica-estudo-que-embasou-uso-de-hidroxicloroquina-contra-covid-19/ http://diogoschelp.blogosfera.uol.com.br/2020/03/26/medico-critica-estudo-que-embasou-uso-de-hidroxicloroquina-contra-covid-19/#respond Thu, 26 Mar 2020 11:00:27 +0000 http://diogoschelp.blogosfera.uol.com.br/?p=2426 Coronavírus

Amostras para teste de coronavírus na Fiocruz (Foto: Carl de Souza/AFP)

O Ministério da Saúde anunciou que começará a distribuir nesta quinta-feira (25) os medicamentos cloroquina e hidroxicloroquina para o tratamento de pacientes com formas graves da COVID-19. Os técnicos do governo também criaram um protocolo para administração dos remédios ao longo de cinco dias, apenas sob supervisão médica e em pacientes hospitalizados.

A cloroquina e a hidroxicloroquina começaram a ser mencionadas como panaceia contra a COVID-19 depois que um estudo francês apresentou a segunda substância como eficiente no combate ao vírus. Tanto o presidente americano Donald Trump quanto o brasileiro Jair Bolsonaro referiram-se aos medicamentos como promissores no tratamento da doença.

“Esse medicamento já provou que tem ação na evolução do ciclo do vírus, mas os estudos em humanos estão em curso. Essa é uma alternativa terapêutica que estamos dando aos profissionais de saúde para tratarmos esses pacientes graves que estão internados”, disse o ministro Luiz Henrique Mandetta.

O cardiologista Luís Cláudio Correia, diretor do Centro de Medicina Baseada em Evidência, da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, em Salvador, fez uma análise minuciosa do estudo que embasou o uso da hidroxicloroquina e seu análogo, a cloroquina. Ele encontrou diversas inconsistências graves do trabalho em questão e considera que não fornece provas que justifiquem o uso do medicamento. Para Correia, trata-se de um estudo a ser descartado. Ainda assim, foi com base nesse estudo que a hidroxicloroquina desapareceu das farmácias, o presidente mandou intensificar sua produção e o ministério a incluiu no tratamento de pacientes com COVID-19.

A seguir, o artigo com as conclusões de Correia sobre o embasamento científico do trabalho francês. 

 * * *

Hidroxicloroquina: o dia em que a ciência parou

Luís Cláudio Correia

O mundo não experimenta apenas a epidemia de coronavírus. Progressivamente fomos tomados por outras duas epidemias: do medo e da informação. Nos últimos dias, instalou-se a quarta epidemia: a da irracionalidade científica. Mais abrupta que as outras, experimentamos um ponto de inflexão: o dia em que a ciência parou.

Tudo começou de manhã da última quinta-feira (19). Eu subia as escadas do hospital em direção a minha sala, quando recebo a cópia de um artigo francês, enviado por um amigo que é uma das maiores referências mundiais no estudo de malária. Um cientista puro. O trabalho testara o benefício da hidroxicloroquina para o tratamento da COVID-19. A conclusão indicava que “o tratamento com hidroxicloroquina é significativamente associado a desaparecimento da carga viral” na doença em questão. (No original, em inglês: “… hydroxychloroquine treatment is significantly associated with viral load reduction/disappearance in COVID-19 patients”.)

Naquele primeiro lance de escada, comentei que este era um assunto para cientistas como ele, mas ainda não para corredor de hospital. Ele concordou. Minha resposta foi um tanto intuitiva, de relance.

Já no segundo lance de escada (são apenas dois andares), me surpreendi com uma mensagem de um colega intensivista, mencionando que o estudo estava tendo grande repercussão nos grupos de medicina crítica. Comentei que já sabia (há 15 segundos).

Chegando ao corredor onde fica minha sala, me deparo com o coordenador das UTIs de meu hospital, que me expressou uma visão crítica a respeito do que estava acontecendo, embora todos ainda estivéssemos sem saber em detalhe do que se tratava.

Nestes últimos dias foram incontáveis os textos e mensagens apontando o estudo francês. A suposta solução tornou-se frente de batalha de alguns governos contra o COVID-19.

Neste artigo, pretendemos abordar a inusitada qualidade do trabalho francês. No entanto, esta discussão perde o sentido diante de um ecossistema clínico em que evidência de qualidade é considerada “desnecessária devido à gravidade da situação”.

Desta forma, mais do que uma discussão metodológica, precisamos aprofundar a interface do raciocínio clínico com a dimensão epistemológica da ciência. 

Coronavírus: devemos abandonar o ônus da prova?

Naquele dia, a ciência parou e deu lugar a observações do tipo “nesta situação crítica, não podemos colocar barreiras científicas”. No entanto, estas observação carecem da diferenciação entre duas dimensões: a sistêmica e a individual.

Epidemia é uma situação sistêmica. Considera-se que a epidemia de coronavírus é potencialmente grave. Temos assim uma grave situação sistêmica, cuja conduta indicada são medidas populacionais de redução da transmissão. Medidas de alto custo, que se julgam necessárias pela gravidade sistêmica.

Por outro lado, uma vez adquirida a doença, a análise de um paciente se torna individual e não sistêmica. Mesmo que uma doença tenha origem em uma epidemia, o tratamento do doente tem dimensão individual.

O doente tem um risco individual de morte e o tratamento oferecerá uma redução relativa do risco a este doente. Nesta dimensão individual, raciocinamos com probabilidade de desfecho indesejado em um paciente (risco individual). O risco individual é estimado pela mortalidade geral da doença. A mortalidade do coronavírus (dentre indivíduos que chegam ao diagnóstico) é de 2-3%. Observem que esta é uma mortalidade menor do que sepse ou infarto do miocárdio.

Sendo assim, a COVID-19 não representa uma condição em que se justifique a violação do ônus da prova científica. Se COVID-19 fosse o caso de dispensar evidências de tratamento individual, abandonaríamos evidências em muitas outras doenças agudas, cujos tratamentos são pautados na verdadeira demonstração de eficácia.

A COVID-19 não representa uma condição em que se justifique a violação do ônus da prova científica”

Portanto, aqueles que argumentam estarmos diante de uma situação em que se faz necessário a perda da integridade científica, na escolha de tratamentos individuais, estão confundindo as dimensões sistêmicas e individual.

Quando evidências empíricas são desnecessárias?

Evidências empíricas de um tratamento são desnecessárias quando leis da natureza garantem a eficácia, independente de uma eventual comprovação empírica. Estas são situações de “plausibilidade extrema”, exemplificadas pelo paradigma do paraquedas, quando a lei da gravidade assegura a eficácia. Ventilar um paciente com insuficiência respiratória extrema se encaixa nesta situação.

Uma variante da plausibilidade extrema são condições sem eficácia garantida da conduta, mas com prognostico negativo inexorável. Por exemplo, quando temos um quadro clínico de fatalidade garantida, em algumas situações, pode-se considerar a adoção de um tratamento empiricamente não comprovado. No entanto, esta conduta deve se restringir a tratamentos de efeito intermediário garantido. Por exemplo, ECMO (equipamento que substitui as funções do pulmão e do coração) na insuficiência respiratória ou circulatória extrema. Mesmo que não saibamos se no final das contas reduz mortalidade, sabemos que o tratamento tem um efeito garantido nas trocas gasosas ou circulatório. Este efeito intermediário é uma condição básica para que um eventual efeito benéfico final se faça presente.

O caso do coronavírus não corresponde a condições de plausibilidade extrema. Primeiro, não temos uma doença de fatalidade inexorável, pelo contrário. Segundo, hidroxicloriquina não tem um efeito intermediário garantido.

Preciosismo científico?

Importante perceber que o rigor científico não serve à ciência. O rigor científico serve à sociedade e aos indivíduos. Ciência não é um fim, é um meio.

A tentativa de baixar o crivo da ciência carece da visão econômica sob a ótica probabilística. Economia no sentido de balancear consequências positivas e negativas. Probabilidade no sentido de reconhecer que benefícios e consequências não intencionais têm imprevisibilidade.

O benefício de um tratamento comprovadamente benéfico é probabilístico. O que oferecemos ao paciente é uma probabilidade. Ao reperfundir um paciente com infarto do miocárdio, temos uma probabilidade de 5% em salvar uma vida. Por isso que precisamos tratar 20 para beneficiar 1 (o paradigma do NNT).

Se, além disso, não sabemos se o tratamento é benéfico, a probabilidade vira condicional, ou seja P1 (probabilidade de benefício individual) x P2 (probabilidade do conceito científico ser verdadeiro). A multiplicação de duas probabilidades resulta em um probabilidade bem menor.

O rigor científico não serve à ciência. O rigor científico serve à sociedade e aos indivíduos

Outro fator que não sabemos é o caráter do benefício: é prevenção de morte, de complicações, rapidez de recuperação, controle de sintomas? Estamos diante de uma pequena probabilidade de beneficiar e nem sabemos que tipo de benefício.

Do outro lado, consequências não intencionais são múltiplas, desde algumas mais previsíveis a outras que nunca imaginaríamos. Neste caso não temos probabilidade condicional (P1 x P2). São muitas probabilidades, uma para cada tipo de consequência, e essas probabilidades de somam (P1 + P2 + P3 + P4 …..).

Esta é a  base para o princípio da hipótese nula: partimos da premissa de não existência do benefício até que se prove o contrário. Isso não é apenas uma técnica científica, é um pensamento pragmático.

Partimos da premissa de não existência do benefício até que se prove o contrário

Pode haver consequências clínicas negativas como efeitos adversos, interações medicamentosas. No entanto, julgo mais escalável as consequência indiretas:

Primeiro, a dispersão dos esforços e atenção para condutas fúteis, em detrimento da valorização do básico, a qualidade assistencial. Diante de uma situação crítica, devemos nos concentrar para fazer de melhor o que devemos fazer, ao invés de nos distrairmos com condutas que não sabemos se devemos fazer. O impacto da qualidade assistencial (impossível de ser perfeita) em geral é imensurável e tende a ser maior que tratamentos específicos;

Continuando as consequências indiretas: fadiga cognitiva da equipes médicas com um amontoado de informações inúteis; a falsa esperança; o uso político; o marketing clínico baseado em fantasia. No início desta epidemia, a comunidade médica criticava profissionais que tentavam vender suas terapias ortomoleculares ou coisas do gênero. Por que agora estamos fazendo o mesmo?

Essa discussão não corre em prol da proteção da ciência. Serve para protegermos nossa racionalidade, nosso paciente, nossa sociedade.

O Artigo Francês

Este artigo é um aglomerado de vieses. Mas não são apenas vieses clássicos, há condutas que nem constam nos tradicionais checklists. Algo caricatural. Foram 26 pacientes que utilizaram hidroxicloroquina versus 16 pacientes controles. Um hospital de Marselha recrutou pacientes para o tratamento e outros centros de outras regiões recrutaram os controles. O desfecho foi substituto: a negativação virológica do swab nasal no sexto dia.

At day6 post-inclusion, 70% of hydroxychloroquine-treated patients were virologicaly cured comparing with 12.5% in the control group (p= 0.001).  (“No dia 6 após a inclusão, 70% dos pacientes tratados com hidroxicloroquina estavam virologicamente curados comparados com 12,5% no grupo de controle (p=0,001) – tradução do editor.)

Primeiro, viés de confusão. Randomização serviria para evitar o viés de confusão, o que não ocorreu. Mas este estudo vai além, ele causa viés de confusão. Não prevenir não é o mesmo que causar.

O inusitado: pacientes de Marselha que recusavam o tratamento continuavam no estudo como grupo controle! Isso provoca grande heterogeneidade basal entre os grupos, pois pacientes que recusam são diferentes de pacientes que aceitam. Ao recusar um tratamento, os pacientes não deveriam ser incluídos no estudo. Na verdade, em um ensaio clínico, potenciais voluntários não recusam tratamento. O que eles recusam é entrar no estudo.

Seguindo o padrão de irracionalidade, pacientes que se encaixavam em critérios de exclusão (comorbidades, contraindicações à droga), eram incluídos no estudo como grupo controle. Pacientes mais graves, antes no grupo droga, foram transferidos para o grupo controle.

Segundo, o estudo exclui do grupo tratamento de pacientes que não completaram o tratamento, em um grosseira violação do princípio da intenção de tratar. Inadequadamente denominam isso de “loss of follow-up”. Não houve perda de seguimento, os pacientes continuavam disponíveis para ser avaliados. Na verdade, esta é uma análise por protocolo, em que 6 dos 26 pacientes saíram do estudo: 3 porque foram para a UTI, 1 porque morreu (!!), 1 porque teve náusea e outro porque teve alta hospitalar. Dos 6, 5 pacientes não continuaram o tratamento porque pioraram! E estes foram excluídos do grupo droga.

Terceiro, há possibilidade de viés de desempenho promovido por diferenças nas condutas gerais entre os grupos. Em estudo aberto, grupo tratamento em hospital é diferente do grupo controle. Devemos procurar sinais: espontaneamente, 6 pacientes do grupo tratamento receberam azitromicina. Não que azitromicina vá resolver nada, mas isto é um sinal indicativo de maior atenção ou indicação de cuidados adjuntos.

Quarto, risco de erro aleatório. Este é claramente um estudo pequeno, o que aumenta sobremaneira a probabilidade do erro aleatório. O cálculo amostral traz a ilusão de 85% de poder. No entanto, não apresenta a premissa de positividade do swab no grupo controle e estima uma inusitada eficácia de 50%. Algo bom demais para ser verdade para a maioria dos tratamentos, quanto mais para este de baixa probabilidade pré-teste. Portanto, aqui temos um estudo pequeno, com alto risco de erro aleatório. E para que um estudo pequeno consiga demonstrar “significância estatística”, esta precisa que ser tão grande que se torna “boa demais para ser verdade”.

É uma redução relativa de 82% no positividade. Isso normalmente não acontece. No entanto, devemos reconhecer que para tratamento antibiótico esta grande magnitude de efeito pode acontecer. Por exemplo, se compararmos antibiótico com placebo em infecção bacteriana grave, o tamanho do efeito seria muito grande. Por outro lado, devemos evitar a ilusão de que estamos usando um antibiótico para o coronavírus.

Por fim, aqui estamos diante de um resultado laboratorial, o que conhecemos como desfecho substituto. Mesmo que considerássemos esse resultado confiável, ainda haveria uma grande incerteza do benefício clínico.

Por tudo isso, esse é um estudo a ser descartado, por seu alto risco de viés e acaso. Em um pensamento científico bayesiano, esse estudo não aumenta a probabilidade da hipótese ser verdadeira.

Conclusão

A medicina se presta a melhorar prognóstico e trazer bem estar. Em momentos de curso clínico indesejável, rituais médicos trazem apoio psicológico e segurança perceptível a pacientes e familiares. Isso também faz parte do nosso trabalho. Bons médicos possuem seus próprios rituais sutis que trazem bem estar, independente do impacto no desfecho do paciente. Talvez prescrever uma droga de eficácia desconhecida não seja o melhor ritual.

(Este artigo é um versão atualizada e resumida de uma análise publicada pelo Dr. Luís Cláudio Correia na página Medicina Baseada em Evidências.)

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Jair Bolsonaro, o coronavírus e o dilema do trem descontrolado http://diogoschelp.blogosfera.uol.com.br/2020/03/25/jair-bolsonaro-o-coronavirus-e-o-dilema-do-trem-descontrolado/ http://diogoschelp.blogosfera.uol.com.br/2020/03/25/jair-bolsonaro-o-coronavirus-e-o-dilema-do-trem-descontrolado/#respond Wed, 25 Mar 2020 15:56:56 +0000 http://diogoschelp.blogosfera.uol.com.br/?p=2417 Bolsonaro

Jair Bolsonaro (Foto: Adriano Machado)

Em seu pronunciamento na TV na noite desta terça-feira (24) e em declarações desta quarta-feira (25), o presidente Jair Bolsonaro escancarou sua estratégia para lidar com a crise provocada pela pandemia do novo coronavírus. Para Bolsonaro, o problema se coloca em termos semelhantes a um conhecido dilema ético, o do trem descontrolado.

Esse dilema consiste na seguinte situação: um trem sem freios está prestes a atropelar cinco pessoas deitadas no trilho à frente, na rota da locomotiva. Ciente do que está prestes a acontecer, um funcionário da ferrovia tem a opção de puxar uma alavanca capaz de desviar o trem do seu rumo, direcionando-o por uma linha que provocaria a morte de apenas um indivíduo. A questão ética que se coloca é: deixar o trem seguir seu rumo, resultando na morte de cinco pessoas, ou desviá-lo e provocar a morte de uma pessoa?

O problema que se coloca diante do presidente é uma variante cercada de incertezas desse dilema clássico.

No caso de Bolsonaro, o trem é a pandemia do coronavírus. Não fazer nada e deixá-lo seguir seu curso, abdicando de promover o isolamento social da população, pode levar à morte de milhares de pessoas pelo COVID-19. Tomar uma atitude, puxando a “alavanca” e mandando as pessoas ficarem em casa, porém, também tem potencial para afetar negativamente milhares de brasileiros, na forma de desemprego e aumento da pobreza.

Bolsonaro não quer puxar a alavanca do isolamento geral da população porque, na sua visão, deixar o trem desgovernado do coronavírus seguir seu rumo só vai matar velhinhos. O presidente inventou o darwinismo viral: idosos sem vigor físico como ele podem morrer, mesmo, fazer o quê. “No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado pelo vírus não precisaria me preocupar, nada sentiria ou seria quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho”, disse Bolsonaro.

Sua opção ética é clara: ele já escolheu quem ele prefere que seja atropelado pela pandemia.

Mas Bolsonaro não quer assumir a responsabilidade por essa decisão. Por isso, joga a batata quente para a mão da imprensa e dos governadores dos estados. Em seu pronunciamento, ele disse que os meios de comunicação usaram os dados da epidemia na Itália, com grande número de mortes, para espalhar o pânico na população brasileira, fazendo com que “uma grande histeria se espalhasse pelo país”. Disse, também, que “algumas poucas autoridades estaduais e municipais devem abandonar o conceito de terra arrasada, a proibição de transportes, o fechamento de comércio e o confinamento em massa”.

Ou seja, Bolsonaro prepara o terreno para que, quando a pandemia chegar ao fim, possa dizer que, enquanto tinha que optar entre acionar a alavanca ou não, os jornalistas estavam do outro lado do trilho gritando, pressionando-o, para que a puxasse, enquanto os governadores tratavam de arrancá-la da sua mão para desviar o trem descontrolado do seu rumo.

A estratégia de Bolsonaro, portanto, é de se eximir de responsabilidade. Ele não quer ser responsável nem pelas mortes causadas pelo novo coronavírus, nem pelo desastre econômico e social provocado pela paralisação do país.

Se as medidas de isolamento social derem certo e a mortalidade pelo coronavírus for baixa, ele vai dizer que tinha razão ao afirmar que se tratava de uma histeria.

Se não derem certo, ele vai alegar, no futuro: “Viram só? A economia foi para o buraco por causa do confinamento, mas muita gente morreu do mesmo jeito. Se tivessem feito o que eu falei, teríamos todas essas mortes, mas ao menos a economia estaria bem.” E ele vai afirmar que a culpa foi da imprensa e dos governadores que puxaram a alavanca à sua revelia.

Bolsonaro parece acreditar que esse discurso funciona porque ninguém vai poder dizer, exatamente, quantas pessoas foram salvas pelas medidas de contenção. O estrago que a pandemia pode causar no Brasil só seria conhecido, em toda a sua extensão, se nada fosse feito. Se a alavanca não fosse puxada. Mas aí seria tarde demais.

O presidente, portanto, demonstra mais uma vez que aposta no caos para garantir a sua sobrevivência política. E é só nisso que ele pensa. Essa é a ética do homem diante da alavanca.

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Resultado de testes para COVID-19 demora até 14 dias em SP, dizem médicos http://diogoschelp.blogosfera.uol.com.br/2020/03/24/resultado-testes-covid-19-demora-ate-14-dias-em-sp-dizem-medicos/ http://diogoschelp.blogosfera.uol.com.br/2020/03/24/resultado-testes-covid-19-demora-ate-14-dias-em-sp-dizem-medicos/#respond Tue, 24 Mar 2020 06:58:07 +0000 http://diogoschelp.blogosfera.uol.com.br/?p=2408 Coronavírus

Coronavírus (Foto: iStock)

Os resultados dos testes para o diagnóstico de COVID-19, enfermidade causada pelo novo coronavírus, na rede pública de saúde do estado de São Paulo estão demorando entre sete e catorze dias para serem concluídos e entregues, segundo relato feito a este blog por médicos e funcionários que atuam em hospitais estaduais tanto da capital quanto do interior. O ideal, segundo os especialistas, é que os exames laboratoriais para confirmar ou não a doença não levem mais do que dois dias para a serem concluídos.

As análises das amostras são feitas pelo Instituto Adolfo Lutz, órgão do governo do estado que também recebe material coletado de pacientes com suspeita de coronavírus de outras regiões do país. Questionada por este blog, a Secretaria de Estado da Saúde explicou, por meio de sua assessoria de imprensa, que o atraso se deve ao fato de que “o Instituto Adolfo Lutz está priorizando o processamento das amostras de casos graves e óbitos”.

“Conforme medida definida pelo Centro de Contingência do Coronavírus em São Paulo e do Centro de Operações de Emergências (COE -SP), de acordo com a atual situação epidemiológica do Estado, os exames laboratoriais visando diagnóstico do vírus SARS-CoV-2 devem ser solicitados somente para pacientes internados graves ou críticos, para unidades sentinelas e profissionais de saúde. O teste diagnóstico não deve ser realizado em pessoas assintomáticas. A medida visa a otimização e uso racional dos testes, devido à situação pandêmica e a disponibilidade dos insumos em âmbito mundial”, justifica a secretaria, em nota.

Mesmo as unidades de saúde que seguem essas recomendações, porém, estão obtendo os resultados com atrasos consideráveis. É o caso do Instituto de Infectologia Emílio Ribas e do Hospital das Clínicas da USP, que têm recebido a confirmação dos testes uma semana, em média, depois do envio das amostras. No Hospital do Servidor Público Estadual, os resultados de todos os casos, inclusive os mais graves, de suspeita de coronavírus estão demorando entre sete e catorze dias para chegar. O Hospital das Clínicas da Unesp, em Botucatu, por sua vez, já enviou desde o início do mês mais de 100 amostras para o Instituto Adolfo Lutz, a maioria sem resposta, por enquanto.

Um médico residente no HC de Botucatu — que apresentou sintomas suspeitos depois de ir ao casamento da irmã da influenciadora digital Gabriela Pugliesi na Bahia, no dia 7 de março, onde vários convidados foram contaminados pelo coronavírus — só recebeu o resultado negativo do seu exame neste domingo (22), dez dias depois do envio do teste ao Adolfo Lutz. Por ser médico, ele se enquadra na categoria de “profissionais de saúde”, que deveriam ter prioridade na realização do teste. Durante o tempo em que ele ficou sem resposta, precisou ficar em isolamento — sem poder trabalhar, portanto. Além disso, a população da cidade entrou em pânico, pois ele havia tido contato com vários pacientes e moradores antes de se tornar um caso suspeito.

Segundo o médico Alexandre Naime Barbosa, membro titular da Sociedade Brasileira de Infectologia, é compreensível que o laboratório do Instituto Adolfo Lutz esteja sobrecarregado, mas falta transparência e comunicação para admitir o problema. No caso da suspeita de que o médico de Botucatu estava infectado, por exemplo, se houvesse uma clareza de que o resultado ia sair só em dez dias, seria possível conter melhor a ansiedade da população local.

O infectologista também afirma que o “atraso na divulgação de resultados prejudica completamente o planejamento terapêutico. A gente nem conta mais com esse resultado. Vai tratando de forma sindrômica, como se o paciente já tivesse o resultado positivo, porque se for esperar o teste perde tempo hábil para tratar adequadamente.”

Em nota, a secretaria de saúde minimiza a relevância do teste para a definição dos cuidados médicos: “Cabe ressaltar que o teste não impacta no tratamento da pessoa, que é feito apenas do ponto de vista clínico, e que o acompanhamento do cenário da COVID-19 também pode ser embasado no critério clínico-epidemiológico, assim como ocorre com outras doenças infecciosas.”

Por fim, a demora nos exames para o diagnóstico do COVID-19 provoca uma subrepresentação nos dados oficiais. “Esses dados diários que a gente vê de casos novos do país todo são um retrato do passado, do dia em que a coleta foi feita — de alguns dias ou semanas atrás, a depender da demora na realização dos testes”, diz Barbosa. Ou seja, não é possível conhecer verdadeiramente o estágio atual da pandemia no país, porque os casos não são confirmados com a rapidez necessária.

Nesta segunda-feira (23), o governo de São Paulo anunciou que dezessete laboratórios ligados à USP, com apoio do Instituto Butantan, formarão uma nova rede para ampliar o diagnóstico de coronavírus, com capacidade para realizar 2.000 testes por dia. A secretaria de saúde não informa quantas amostras estão acumuladas à espera de análise no Instituto Adolfo Lutz.

(Numa versão anterior dessa reportagem, o nome do Instituto Adolfo Lutz no sexto parágrafo estava incorreto e foi corrigido.)

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Como a pandemia do coronavírus ameaça a democracia http://diogoschelp.blogosfera.uol.com.br/2020/03/22/como-a-pandemia-do-coronavirus-ameaca-a-democracia/ http://diogoschelp.blogosfera.uol.com.br/2020/03/22/como-a-pandemia-do-coronavirus-ameaca-a-democracia/#respond Sun, 22 Mar 2020 20:15:12 +0000 http://diogoschelp.blogosfera.uol.com.br/?p=2400 Coronavírus pet

Cachorro com máscara em rua de Xangai, na China, no domingo, 22 (Foto: Aly Song/Reuters)

A pandemia do novo coronavírus, além da óbvia ameaça que representa à vida de populações de todo o mundo, está se provando devastadora para a economia global. Mas há outro risco grave embutido na rápida expansão da doença: o impacto na saúde dos sistemas democráticos.

A pandemia está levando os governos a tomar medidas drásticas para conter o avanço da enfermidade e de seus efeitos sociais e econômicos. Isso inclui, por exemplo, o adiamento de eleições, como já ocorreu na Bolívia, que cancelou a votação do dia 3 de maio para a escolha de um novo presidente — considerada essencial para que o país voltasse à normalidade democrática depois da renúncia de Evo Morales, em novembro passado. No Brasil, começa a ganhar corpo a possibilidade de que o pleito municipal, marcado para outubro deste ano, seja adiado. A medida foi defendida neste domingo (22) pelo ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Para ocorrer, precisaria de aprovação do Congresso Nacional.

O argumento de Mandetta para adiar as eleições, mantendo os atuais prefeitos em seus cargos até que se possa marcar um novo pleito, é justamente o de defesa da democracia. Ele acredita que a medida evitaria a politização da pandemia, mantendo o foco de todos no combate ao alastramento da doença. O próprio Mandetta, que antes da crise do coronavírus tinha planos de se candidatar à prefeitura de Campo Grande (MS), terá que adiá-los se a medida for aprovada.

Outro argumento que tem sido usado para defender o cancelamento das eleições municipais deste ano é o de direcionar os recursos (do Fundo Eleitoral, por exemplo) para o combate à doença e à mitigação dos impactos sociais e econômicos. O pleito poderia ser empurrado para 2022, quando seria realizado junto com as eleições para cargos em nível federal e estadual. Isso unificaria de vez as eleições.

A verdadeira ameaça à democracia está em outros efeitos colaterais da pandemia. Cito aqui alguns deles e suas possíveis consequências:

  • Propaganda enganosa – O governo chinês está sutilmente aproveitando a pandemia para passar uma mensagem simples, mas poderosa: a de que um Estado totalitário tem melhores condições de impor as medidas draconianas necessárias para conter a disseminação de um vírus. O anúncio de que a situação na Itália está pior do que no auge da epidemia na China, onde o número de novos casos já está caindo, chegou a ser comemorado por meios de comunicação estatais chineses. Afinal, na Itália, uma democracia, impor uma quarentena é mais complicado. Já há mais italianos sendo processados por violar a ordem de isolamento do que o número total de contaminados no país. O governo chinês, por sua vez, vem adotando um discurso duplo: primeiro, de negar que tenha negligenciado a epidemia em sua origem; segundo, demonstrar que está conseguindo superar rapidamente a pior fase do alastramento da doença e que já começa a retomar inclusive a atividade econômica, graças à capacidade de impor medidas com rapidez e eficiência, sem contestação. Especialistas chineses que foram à Itália para dar assistência na contenção da pandemia têm criticado duramente a incapacidade do governo do país europeu em impor as medidas de quarentena;
  • Vigilância tecnológica — Diversos governos demonstram a tentação de usar as novas tecnologias móveis para vigiar os cidadãos. Em Israel e em Singapura isso já está acontecendo, com o intuito de saber quem entrou em contato com pessoas contaminadas e, portanto, deve entrar em isolamento. Mesmo na Itália há uma discussão sobre a possibilidade de monitorar os movimentos das pessoas pela geolocalização de seus aparelhos celulares, com o objetivo de descobrir quem está violando a quarentena. A medida abre um perigoso precedente e entra em conflito com questões como privacidade e liberdade individual. Trata-se de algo que a China já vem adotando, a ponto de, segundo reportagem do jornal americano New York Times, as autoridades estarem dando ordens individuais de quarentena sem que as pessoas afetadas saibam o motivo. A explicação pode estar em um aplicativo de monitoramento de dados de saúde que os cidadãos estão sendo instados a usar;
  • Restrição de liberdade de movimento — Mesmo sem monitoramentos por celular ou outras medidas mais invasivas à privacidade, a sensação de controle estatal, normalmente mais suave em regimes democráticos, aumenta consideravelmente, ainda que sob condições que, pelo bem comum, sejam justificadas. Neste fim de semana, por exemplo, foram instaladas barreiras na entrada de Botucatu, uma cidade do interior de São Paulo, para medir a temperatura de motoristas e passageiros do carros. Quem estivesse com febre, seria escoltado para atendimento médico. Tentativas como essa, de isolar cidades inteiras do contato com o vírus, replicando medidas extraordinárias adotadas nas fronteiras nacionais, tendem a se replicar em diversas partes e em diferentes graus, aumentando as restrições à liberdade de ir e vir, um pilar essencial das democracias;
  • Governos nacionais desafiados — A pandemia está criando tensões entre governos locais e nacionais não apenas no Brasil, mas também em outros países. Na Itália, por exemplo, há governadores pedindo a atuação do exército para impor a quarentena, ao mesmo tempo em que criticam outras medidas consideradas excessivas, como a ideia de monitorar os celulares dos cidadãos;
  • Tentação autoritária — A situação extraordinária que se está vivendo pode ser usada por líderes que se encontram politicamente enfraquecidos para concentrar poder e afastar opositores do caminho. O premiê israelense Benjamin Netanyahu é um exemplo. Depois da terceira eleição em menos de um ano, ele corria o risco de perder a maioria para poder governar quando veio a pandemia, o que lhe permitiu mudar o foco do debate nacional e transformar a troca de governo um assunto não prioritário. Bibi, como o premiê israelense é chamado, é investigado por corrupção e pode ser preso quando perder o cargo. No Brasil, a preocupação é com a possibilidade de o presidente Jair Bolsonaro querer usar a pandemia como justificativa para tentar instituir o estado de sítio, o que permitiria ao governo impor medidas de restrição de direitos como a violação de correspondências, o controle da imprensa, a suspensão de liberdade de reunião e a busca e apreensão em domicílios.

Há bons argumentos para considerar que muitas das medidas que, numa situação normal, seriam consideradas autoritárias, são necessárias em uma pandemia como a que o mundo está vivendo. Mas é preciso estar vigilante para que elas não extrapolem o que a urgência exige e se tornem instrumentos pessoais de poder.

Em tempos de guerra ou de calamidade pública, os regimes democráticos têm a legitimidade popular para tomar decisões drásticas pelo bem coletivo. A preocupação deve ser com os abusos, que podem abrir a porta para um contexto autoritário que perdure muito além da pandemia.

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Na Noruega, jovens já são 32% dos internados em UTI com coronavírus http://diogoschelp.blogosfera.uol.com.br/2020/03/20/na-noruega-jovens-ja-sao-32-dos-internados-em-uti-com-coronavirus/ http://diogoschelp.blogosfera.uol.com.br/2020/03/20/na-noruega-jovens-ja-sao-32-dos-internados-em-uti-com-coronavirus/#respond Fri, 20 Mar 2020 15:59:25 +0000 http://diogoschelp.blogosfera.uol.com.br/?p=2391 Noruega

Agente de saúde faz teste de coronavírus em motorista em Sandvika, na Noruega, no dia 2 de março (Foto: Terje Bendiksby/NTB Scanpix via REUTERS)

Pacientes com menos de 50 anos de idade representam 32% dos infectados com coronavírus que foram colocados em Unidades de Terapia Intensiva (UTI) na Noruega, segundo o jornal norueguês VG, o maior do país.

O dado coloca à prova a ideia de que a doença afeta com gravidade apenas pessoas idosas. Essa percepção ocorria pois, de acordo com os números iniciais, os mais jovens realmente se provavam mais resistentes ao vírus. Adultos não idosos, jovens e crianças, portanto, também podem manifestar sintomas graves.

Segundo um relatório da Associação de Anestesia da Noruega sobre a epidemia, ao qual o jornal teve acesso, dos 34 pacientes com coronavírus admitidos em UTIs na terça-feira (17), dois tinham entre 0 e 24 anos, nove entre 25 e 49 anos, dezoito entre 50 e 75 anos e cinco acima de 75 anos de idade.

No total, a Noruega já confirmou 1.848 casos de coronavírus e sete mortos até a sexta-feira (20). A Noruega é um país com população pequena (5 milhões de pessoas), com um perfil mais jovem do que a Itália e com um sistema de saúde de ponta, com baixa subnotificação (para efeito de comparação, no Brasil há um caso confirmado para cada 350.000 habitantes; na Noruega há um para cada 2.800 habitantes).

A comparação com a Itália é esclarecedora. No último fim de semana, havia na Itália cerca de 1.500 pacientes com coronavírus em UTIs. A idade média desses pacientes era de 69 anos e não havia nenhum com menos de 18 anos. Parte da explicação reside no fato de que, por falta de leitos, os hospitais italianos tiveram que optar num primeiro momento por casos mais graves em detrimento de outros que também poderiam precisar desse tipo de atendimento.

A tendência é que, conforme a pandemia vai se alastrando, mais e mais jovens com sintomas graves da doença recorram à hospitalização.

Os números divulgados nesta quinta-feira (19) pelos Centros de Controle e Prevenção de Doenças, do governo americano, confirmam a tendência apontada de maneira mais aguda pela Noruega. Dos primeiros 2.500 casos de coronavírus nos Estados Unidos, 32% tinham entre 0 e 44 anos e, destes, 4% foram parar numa UTI.

Ainda não há informações consolidadas sobre a existência de doenças preexistentes nos jovens que precisaram receber tratamento intensivo nos Estados Unidos e na Noruega.

Continua sendo verdadeira a informação de que os idosos e as pessoas com outros fatores de risco são os que apresentam os sintomas mais severos do coronavírus, mas os novos dados apontam para uma situação preocupante: se os jovens não começarem a adotar medidas para evitar o contágio, logo estarão disputando leitos de hospital com os mais velhos.

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O presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, durante entrevista coletiva nesta quarta-feira, 18 (Foto: Lucio Tavora/Xinhua)

As autoridades brasileiras e os principais comentaristas da cena política dividem-se em dois grupos no que se refere à maneira de ver o impacto do novo coronavírus na economia do país. O primeiro — minoritário, mas que inclui o presidente Jair Bolsonaro — considera que as medidas sanitárias preventivas (isolamento com interrupção de atividades produtivas e serviços, por exemplo) vão provocar um estrago desproporcional e injustificável na economia. Para esse grupo, portanto, o impacto econômico tende a ser maior do que o de saúde pública e, por isso, é melhor ir adotando as medidas conforme a doença avança, apostando na possibilidade de que acabe não avançando tanto assim. O segundo grupo olha para o que aconteceu no exterior — especialmente na Itália, onde as medidas preventivas demoraram a ser aplicadas — e defende que é preciso impor barreiras duras ao alastramento do novo coronavírus antes que ele provoque um colapso no sistema de saúde.

A contragosto do primeiro grupo, a segunda visão é a que está prevalecendo no Brasil. Em parte por iniciativa voluntária de empresas que estão enviando seus funcionários para trabalhar em casa ou declarando férias coletivas, em parte por decisões de governadores que ordenaram o fechamento do comércio, por exemplo, o fato que é que o país está parando aos poucos.

Bancos estrangeiros já estão prevendo uma redução de 1% da economia brasileira este ano. Ou seja, recessão à vista.

O resultado é que esta semana, finalmente, o governo federal começou a entregar as primeiras medidas para evitar a quebradeira de empresas, o aumento do desemprego e a queda abrupta na renda dos brasileiros. Entre os principais pontos estão uma ajuda de R$ 200 por mês para trabalhadores informais que estão sofrendo com a queda na demanda por seus serviços ou que se veem obrigados a ficar em casa, a proposta de permitir a redução da jornada de trabalho com diminuição de salário (para evitar demissões, ainda que com queda da renda), adiamento de pagamento de impostos federais para empresas pequenas, a antecipação do décimo terceiro salário para aposentados, expansão de crédito via bancos públicos, ampliação do Bolsa Família e ações de socorro para os setores privados mais afetados pela crise, como o de companhias aéreas.

O pacote, portanto, tem uma combinação de medidas que se sustentam em um tripé: estimular a demanda para aquecer a economia, garantir a renda da população mais vulnerável e proteger os empregos.  Trata-se de uma estratégia em linha com o que defendem alguns dos melhores economistas, principalmente no que se refere à renda e aos empregos. Mas será o suficiente?

Em outros países, estão sendo discutidas soluções ainda mais drásticas. Uma delas é bancar, com dinheiro público, a licença remunerada de todos os trabalhadores que atuam em setores afetados pelo coronavírus. Na Alemanha, por exemplo, foi autorizada uma combinação de redução de jornada de trabalho e abono estatal para compensar a perda de renda dos trabalhadores.

Outra sugestão, defendida em editorial do jornal americano The New York Times, é a de o governo distribuir um valor único para todos os habitantes do país. No caso dos Estados Unidos, 2000 dólares para cada cidadão. O senador republicano Mitt Romney sugeriu distribuir a metade disso, 1000 dólares. A ideia é que o pagamento seja feito a cada quatro meses até a crise passar. O objetivo é garantir que a população tenha dinheiro imediato para cobrir gastos essenciais e estimular a demanda. No caso da distribuição de 2000 dólares, isso custaria 660 bilhões de dólares aos cofres públicos americanos.

A terceira proposta é de oferecer empréstimos, sem juros, a todas as empresas, grandes e pequenas, e também a trabalhadores autônomos, a serem pagos em cinco anos — com a condição de que a maior parte das vagas de trabalho seja mantida. O objetivo aqui é evitar a quebradeira de empresas e manter os empregos. No caso dos Estados Unidos, a proposta custaria o equivalente a metade do PIB anual do país.

Claro que o problema de todas essas ideias é o custo monumental que teriam para os cofres públicos. Países como os Estados Unidos e a Alemanha têm mais capacidade de promover estímulos de tal monta do que o Brasil.

Ainda assim, o valor que o governo federal está disposto a despejar na economia este ano para conter os efeitos da crise causada pelo coronavírus não é desprezível. O pacote de estímulos anunciado pelo presidente americano Donald Trump equivale a 5% do PIB anual de seu país. O que foi prometido pelo ministro da Economia Paulo Guedes fica em torno de 8% do PIB brasileiro. Já o da Alemanha equivale a cerca de 15% do PIB.

A atual crise, por sua origem e pela maneira como contagia diferentes setores da economia, não tem precedentes na história. As soluções que estão sendo adotadas também não.

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O presidente Jair Bolsonaro cumprimenta apoiadores em manifestação que pediu fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal na frente do Palácio do Planalto, em Brasília (Foto: Pedro Ladeira/Folhapress)

Já está mais do que claro que o presidente Jair Bolsonaro não é qualificado para liderar o país no enfrentamento à dupla crise epidemiológica e econômica que se avoluma a cada dia.

Tanto é assim que ele descumpriu as recomendações de sua equipe médica (já são 13 os infectados pelo coronavírus no seu entorno) e do seu próprio governo ao juntar-se aos manifestantes do dia 15 de março, em Brasília. Tanto é assim que ele sequer participou da videoconferência de chefes de Estado da América do Sul para discutir a pandemia. Tanto é assim que ele não integra o comitê de crise criado nesta segunda-feira pelo governo para lidar com os efeitos da pandemia. Tanto é assim que ele não estava presente na reunião entre representantes da cúpula dos três poderes para coordenar ações conjuntas contra a crise. Tanto é assim que, em vez de valorizar o bom trabalho que seu ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, vem fazendo, revela a tentação de fritá-lo. Tanto é assim que, ao ser questionado pela inércia, demonstra só conseguir enxergar disputas políticas em tudo o que está acontecendo.

Apesar de tudo isso, é de se raciocinar se os pedidos de impeachment e de renúncia que estão brotando inclusive em setores que o apoiavam até pouco tempo atrás são justificados ou, no mínimo, adequados para o momento que o país enfrenta.

Entre as vozes mais indignadas estão as de Janaína Paschoal (PSL), deputada estadual em São Paulo, que foi uma das autoras do impeachment da presidente Dilma Rousseff e chegou a ser cogitada para ser candidata a vice de Bolsonaro. Paschoal pediu a renúncia de Bolsonaro pela irresponsabilidade de sua participação na manifestação no domingo (15). Ela diz que não há tempo para um processo de impedimento do presidente. O deputado federal Alexandre Frota (PSDB-SP) adotou outra linha e decidiu protocolar pedido de impeachment contra Bolsonaro.

Há pelo menos três argumentos para não iniciar o afastamento do presidente Jair Bolsonaro — ou, pelo menos, para não fazê-lo agora.

O primeiro é o impacto que um processo político dessa gravidade causaria na dupla crise de saúde pública e econômica que já se desenrola no país. Em um momento de incerteza sobre a capacidade do sistema de saúde de absorver os casos mais graves de pacientes contaminados nas próximas semanas e em que os mercados demonstram uma desconfiança aguda em relação ao futuro econômico do país, tudo de que a nação precisa agora é de um mínimo de estabilidade. Pode-se argumentar que o próprio presidente está contribuindo para o clima de incerteza e desconfiança, mas atuar pela sua saída do cargo não parece o meio mais seguro para reverter o quadro.

O segundo argumento é o efeito de médio e longo prazo que um novo afastamento de um presidente teria sobre a saúde da democracia brasileira. Não se passaram nem quatro anos desde que Dilma Rousseff teve seu mandato abreviado. Os eleitores brasileiros precisam entender as consequências de eleger aventureiros, líderes messiânicos e pessoas despreparadas para a cadeira presidencial.

O terceiro argumento diz respeito ao fato de que os gritos de impeachment e renúncia podem favorecer Bolsonaro politicamente, da mesma forma que o presidente americano Donald Trump saiu-se fortalecido do processo de impeachment, que o absolveu no Senado, este ano.

Aliás, Bolsonaro parece estar atuando deliberadamente para que seus adversários peçam sua cabeça e já está usando o discurso de vítima a seu favor. Nesta segunda-feira (16), Bolsonaro disse que “seria um golpe isolar chefe do Executivo por interesses não republicanos”. Ele se referia aos presidentes da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre. Esse tipo de retórica é justamente o que mantém em alerta a militância bolsonarista — na qual, cada vez mais, Bolsonaro se ampara para garantir um mínimo de legitimidade para permanecer no cargo e, talvez, virar o jogo rumo a um estágio mais autoritário de seu governo.

O caos político favorece Bolsonaro, pois é nele que um político com pendor autoritário se fortalece.

Outro dos autores do impeachment de Rousseff, o jurista Miguel Reale Júnior sugeriu submeter Bolsonaro a um exame de sanidade mental. Seria um precedente deletério. O leque de condições psiquiátricas que justificariam o afastamento de um presidente poderia ser bastante amplo. O que dizer, por exemplo, de um chefe de Estado com problema de alcoolismo, como já tivemos no Brasil? Seria o caso de impedi-lo de governar, também? O presidente americano Ronald Reagan foi diagnosticado com Alzheimer cinco anos depois de encerrar seu governo, em janeiro de 1989, mas havia indícios de que apresentava sintomas da doença enquanto ainda exercia seu mandato. Isso seria uma justificativa para afastar um presidente, também?

Por enquanto, a melhor opção é mesmo deixar que o próprio Bolsonaro se imponha uma camisa de força presidencial, mantendo-se ausente das decisões cruciais, econômicas e sanitárias, para enfrentar a atual crise. É melhor deixá-lo falando sozinho e pressionar seus colaboradores de perfil técnico, como Paulo Guedes, da Economia, e Mandetta, da Saúde, por medidas urgentes e consistentes, em parceria com o Congresso e o Judiciário.

O resto é lenha na fogueira da crise.

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